sexta-feira, 19 de março de 2010

perguntas incisivas sobre a origem da vida

– ó mãe – disse ele, a voz cheia de angústia e a boca cheia de sangue – porque é que temos que mudar de dentes? eu não me sinto preparado para isto…
limpei-lhe as lágrimas dos olhos e o sangue dos lábios. – não chores, querido. tudo isto é normal. – a voz doce e a conversa tranquila chegavam-me de longe, numa espécie de ligação sem fios ao poder mágico que têm as mães de fazer passar dores e tristezas. – estás a crescer e vão nascer dentitos novos…
.
.– eu já sei essas coisas todas e não é disso que eu estou a falar. – o olhar dele mudou de um desamparo suplicante para uma determinação exigente. a condescendência e a presunção morreram-me nos lábios enquanto me senti a corar. por momentos acreditei que me fosse mandar à fava mas ele continuou.
– quem é que nos deu a vida e quem é que fez o mundo? – interrompeu-se-me a magia num instante. pareceu que me ficava o discurso a arranhar a garganta e a saber ao que saberia a estática, se a estática fosse um sabor em vez de ser um som ou uma corrente eléctrica sem definição ou substância. – as árvores e o mar e as coisas, – as palavras saiam-lhe em atropelos indignados – porque é que quem fez tantas coisas nos fez de maneira a termos de mudar de dentes? – rebolou-lhe outra lágrima gorda que eu segui até lhe pingar do queixo. – isto dói, mamã!
.

na palma da mão aberta estava um incisivo do tamanho de uma pedrinha de sal. assim estendido como um inacreditável destroço de vida, a prova acabada da falta de sentido e coerência nas coisas do mundo, a consciência clara da miserável pequenez que marca a condição humana.
abracei-o muito e não fui capaz de lhe dizer mais nada. pensei só que, se calhar, não me sinto preparada para isto…
raquel patriarca
dezanove.março.doismiledez

Sem comentários:

Enviar um comentário