quarta-feira, 21 de março de 2018

hoje é o dia da poesia

Todos os Livros

A partida – 
penso agora que cedo demais – 
empurrou-me ao mundo
livre, é certo, mas ausente de bagagem.
Talvez por isso tenha arrecadado
sem critério
os materiais que compõem a vida alheia.

As folhas amarelas e as estrelas de anis,
as cerâmicas e os monos de pano sem cor,
as vozes ao longe,
os búzios e as bússolas,
as cordas de mil nós.

Todos os livros.

E agora,
fósforo riscado,
farei um verso do mais puro nada.

raquel patriarca | março.doismiledezoito

quinta-feira, 8 de março de 2018

porque deus é uma mulher

Pulso Aberto 
Maria Rezende

Somos porta de entrada
e de saída
somos deusas e escravas
há mil gerações
Dentes afiados
no escuro de entre as pernas
veneno na ponta da cauda
bruxas putas loucas santas
Somos as que sangram sem ferida
donas do prazer
donas da dor
as invisíveis
as perigosas
as pecadoras
as predadoras
Insaciáveis e geradoras
os corpos secretas casas
somos seres de unhas e tetas
caminhando aos milhares as estradas
Somos a terra e a semente
carne de aluguel em alma de rainha
as submissas as bacantes
as que procriam e as que não
Somos as que evitam o desastre
as que inventam a vida
as que adiam o fim
mulher
multidão

por: Maria Rezende
in: Naquela Língua (cem poemas e alguns mais) : antologia da novíssima poesia brasileira. - Amadora : Elsinore, 2017.

quarta-feira, 7 de março de 2018

o sentido da oportunidade

Sentou-se ao meu lado no banco do jardim uma história tímida. Carregava, apesar da leveza aparente, uma concretude e uma dignidade merecedoras. De escrever e de contar. Trazia um personagem. Um só mas muito espesso e complexo, com toda a longevidade de tons entre o ódio de um sicário e a musicalidade de um anjo. Perdi-me de amores por ela – a história – e também por ele – o personagem. As mãos tremeram-me e todas as palavras se adivinhavam já em mancha fluente no que outrora havia de brancura em páginas novas. Mas o sol, que fora escasso por esses dias, aquecia-me agora de mansinho contra o banco do jardim. E eu, perdida de amores por ela – a história – e também por ele – o personagem – fechei os olhos e pousei as mãos trementes. Suspirei imóvel na quentura do dia e a história do personagem ficou, suspiradamente, por contar.

raquel patriarca | vinteeseis.janeiro.doismiledezoito