lembro-me às vezes
– sem quando nem porquê –
do sabor que tinha
o miolo do pão do dia anterior.
mas não sei se era
o pão ou o dia
que tinha
aquele sabor.
e nós as duas
sentadas,
na mesa da cozinha
à janela
de pernas cruzadas,
de pijama e pantufas
remelas nos olhos
cabeças despenteadas.
jogávamos a adivinhar
a cor dos carros
que haviam de passar.
um carro branco, um carro azul
e outro vermelho
– amassado e sem pára-choques –
muito velho,
e uma carrinha preta
logo a seguir.
afinal era uma lambreta
com imensa tralha mal atada atrás
quase quase a cair.
ah pois!
de vez em quando,
uma carroça de bois.
tu acertavas tudo
e eu…
quase nada.
pergunto-me hoje
se fazias tu batota
ou estava eu muito ensonada.
não importa, pois não?
se ainda trago comigo
o sabor do miolo de pão.
eram o mundo inteiro:
uma mesa e uma janela.
e eu acreditava na magia
que passava na estrada,
disfarçada de furgoneta amarela.
lembro-me às vezes
– sem quando nem porquê –
do sabor dessas manhãs,
em que não éramos
ainda nada
nem ninguém.
apenas irmãs.
à minha irmã
raquel patriarca
vinteeseis.agosto.doismilenove
Esta é uma das memórias mais fortes e estruturantes que tenho. Só não tinha a ideia de acertar tantas vezes... Achas que sim? Não seriam os teus olhinhos de pequenina a olhar para a mana "crescida"?
ResponderEliminarTambém me lembro muitas vezes dessas manhãs em que não éramos ainda nada, só irmãs. E tenho saudades.
Raquel, passei aqui por acaso, que ando tão afastada da poesia... Obrigada porque me transportaste para longe outra vez... Ao sabor de uma tarde do passado, do miolo de pão, e também eu tentava, da minha janela, adivinhar a cor do próximo carro. E tenho saudades da minha irmã que está tão longe... Bjs! Parabéns pelos versos de memórias.
ResponderEliminarFizeste-me chorar.
ResponderEliminarFizeste-me lembrar de momentos simples e puros.
Em que também eu e a minha irmã tentávamos adivinhar as cores, e as matriculas e as marcas dos carros.
Fizeste-me chorar...sobretudo porque nessa altura também nós não eramos mais nada a não ser irmãs.