quinta-feira, 22 de maio de 2014

nós e a Anita

.
Nasci na primavera colorida de 1974 e sou rapariga para ter vivido a infância libertária e destecnológica dos anos 80. Tínhamos, as minhas irmãs e eu, os avós por perto, aulas só metade do dia e um quintal onde havia morangueiros cheirosos e malmequeres em arbustos enormes, e onde podíamos brincar descalças nas horas fora da escola, que se interrompiam só pela hora da merenda e ao pôr-do-sol. A rapariga sossegada que sou hoje pouco lembra a miúda irrequieta de então, e o amor e tempo que hoje tenho aos livros, foi coisa que cresceu mais tarde, que naqueles tempos havia sempre muitas árvores para subir e muitos muros para saltar, grilos para apanhar e pôr a viver em casinhas pequenas de plástico que se compravam nas feiras do verão, e muitas outras ocupações semelhantes, todas elas de suma importância para a conquista da felicidade. Também tínhamos actividades dentro de casa, claro, éramos três raparigas e havia discos dos ABBA e da Nana Mouskouri para tocar e dançar, ao som de canções que não compreendíamos a fazer de conta que as cantávamos nós, num qualquer festival, com pernas arrancadas de bonecas de plástico na mão a fazer de microfones, e casacos na cabeça a fazer de cabelos compridos. E também havia livros, entre livros de jogos e contos tradicionais e contos de fadas, o Gigões e Anantes do Manuel António Pina [que ainda aqui está e é um tesouro] e, claro, os livros da Anita que, no original francês, era uma miúda ainda mais coquete que a portuguesa e se chamava Martine.

Os livros da Anita têm textos relativamente correctos do ponto de vista literário, são esteticamente cuidados e agradáveis de folhear e ler pelas meninas que já não são pequeninas mas também ainda não são adolescentes. Mostram bailes de máscaras e aulas de teatro e festas de flores e passeios a cavalo, e trazem um mundo de coisas bonitas e bem compostas que qualquer pré-adolescente da altura, desconhecedora do i-phone, do facebook e… bem, do mundo, poderia considerar desejável. Nós éramos três, as minhas irmãs e eu. A mais velha, a minha irmã Sandra, muito serena e responsável, mais aflita com as minhas asneiras do que eu, era a primeira a receber os livros e era quem os tratava melhor e quem nos lia as suas histórias, com uma paciência quase evangélica. A mais nova, a minha irmã Andreia, era pequenina e mal andava, mas seguia-nos por onde podia e assumia a função de ser a criatura mais querida e doce de sempre. Eu, que sou a do meio, nem era responsável nem doce, era outra coisa diferente que, algures no tempo e no espaço, implicava arrancar pernas às bonecas, riscar livros e dizer muitas vezes a frase “Não fui eu”. Mas voltando aos livros da outra menina que também morava lá em casa... 
.
Os livros da Anita não são propriamente divertidos, essa é logo a primeira falha. Depois, estão cheios daquele discurso meloso que se senta nos diminutivos e em nomes parvos como ‘Pom-Pom’ e ‘Pantufas’, trata os irmãos por ‘manos’ e as ‘mãezinhas’ por ‘você’, e tem composições frásicas como “– Eu, então, acho tanta gracinha às ervilhas!”. Pior que tudo isso criam uma visão estupidamente estreita da vida futura das raparigas, em títulos como Anita na Cozinha, Anita vai à Escola, Anita Mamã, Anita Descobre a Música, Anita Dona de Casa, Anita no Ballet, Anita vai às Compras, Anita e o Curso de Culinária, Anita e o Príncipe Misterioso… and so on, and so on. Não tenho nada contra o ballet, a culinária ou em ir às compras quando é preciso. Na verdade adoro cozinhar e assistir a ballet, e toda a gente tem de ir à mercearia de vez em quando. A questão é que todos estes títulos seriam óptimos se houvesse outros títulos do tipo: Anita Engenheira de Pontes, Anita e o Doutoramento em Astrofísica, Anita Joga Futebol de Sete, Anita não Tem Como Emparelhar as Peúgas Quando as Tira da Máquina de Lavar [este, ainda que bastante pertinente, é capaz e ser muito extenso], Anita Lidera Manifestação Contra Injustiças Sociais, Anita tem Paralisia Cerebral, Anita é Gestora de uma Empresa de Sucesso, Anita Vive com Diabetes, Anita Neurocirurgiã, Anita Liberta-se de Marido Violento, Anita Repórter Fotográfica, Anita Vence o Paris-Dakar… e por aí fora até ao infinito e mais além.

Eu agora, adulta e estudiosa dos livros para crianças, faço parte de um movimento a que se pode chamar de Anti-Anitsmo, e isso é uma escolha racional e consciente. Ao mesmo tempo, acontece que tenho vários [não um, nem dois, mas vários muitos] livros da Anita nas minhas estantes, e nem todos são reminiscências da infância, o que quer dizer que eu, já grande e muito constrangida, comprei livros da Anita e os trouxe comigo para casa, onde os guardo com cuidado e ternura. De vez em quando vejo-lhes as figuras e acho-os riquinhos, e depois caio em mim a vou arrumá-los outra vez. Os livros arrumam-se bem, mas esta duplicidade tem andado, durante anos, tudo menos arrumada, e hoje escrevo livremente sobre o assunto porque tive uma epifania e estou, finalmente, em paz. Estou em paz porque descobri a raiz desta relação tão mal resolvida que tenho com os livros da Anita; descobri, finalmente, por que raio gosto tanto deles mesmo sabendo que são uma treta.
 .

Não sei como nem porquê mas quando olho para os livros,

.


















. 

Na verdade vejo outras coisas...  
 
 .
































raquel patriarca | vinteedois.maio.doismilecatorze
.

2 comentários:

  1. Adorei este texto!
    Concordo com tudo sobre a Anita, menina que sempre me irritou profundamente se nunca perceber bem porquê; já adulta, percebi - a Anita é unidimensional (faltam-lhe efectivamente carreiras diversificadas no repertório), chata e tem sempre um bronzeado de Agosto que me causa espécie (e inveja!).
    Gosto da tua conclusão, mas eu fico-me pela primeira parte :P

    ResponderEliminar
  2. Obrigada por esta maravilhosa descrição do que foi a nossa infância, a nossa vida...e da importância destas vivências no que somos hoje! Quando alguém olha para mim de lado quando canto as músicas dos ABBA não faz a mínima ideia do que significa... é isso mesmo que vejo...e sinto! Um grande beijinho para as minhas manas lindas love yous

    ResponderEliminar