sexta-feira, 29 de agosto de 2014

A biblioteca


Eramos só os quatro a respirar
o meu pai, eu e as minhas duas irmãs

Nós
apertadas no escuro
que era estreito e morava entre corredores
que eram estreitos e moravam entre estantes –
altas        pesadas        absolutas –
carregadas de todos os títulos de todos os livros

Ele
solene     gutural
com o vagar da velhice e da eternidade
falava da sabedoria do mundo,
do sonho       da viagem         da ciência
do amor        da poesia           do engenho          da história
que nos deixava tudo em
herança de guardar e proteger

Isto
é a humanidade que resta –
dizia –
e fechava os olhos e preparava-se para morrer

Eu
desobediente
pensava que gritava mas
a voz sem substância
sumia-se nas páginas de todos os livros

A humanidade vive nas crianças
a alegria e a verdade e a
promessa categórica de todas as coisas que
são boas vive nas crianças

Havemos de querer guardar as crianças

Não haverá crianças para guardar –
dizia o meu pai – os filhos
da tragédia serão sempre velhos e
velhos serão os seus filhos e netos e nenhum
será criança e em todos viverá humanidade nenhuma
nada que preste de guardar ou proteger
e fechava os olhos e preparava-se para morrer

Morria de pé no meio do silêncio
que era fundo e morava entre corredores
que eram fundos e moravam entre estantes –
altas        pesadas        absolutas –
carregadas de todos os títulos de todos os livros


Lá fora – do outro lado
de paredes que não podíamos ver –
a tragédia uivava e a sua voz era a ruína do
mundo e a desgraça da humanidade
feita em escombros vazios de
toda a semântica ou qualquer préstimo      

Lá fora – do outro lado
de paredes que não podíamos ver –
a tragédia invocava razões –
altas        pesadas        absolutas       mentiras –
pensava que gritava mas
a voz sem substância
sumia-se nas páginas de todos os livros

Isto é a humanidade que resta –
rezava o meu pai – a vossa
herança de guardar e proteger e
entregar a ninguém a não ser
ao tempo e à memória –
e fechava os olhos e preparava-se para morrer

E nós –
desobedientes –
chorámos a tragédia e engolimos a escuridão
e escondemos em cada livro uma criança
em cada título um nome, escrito de
alegria e de verdade e da
promessa categórica de todas as coisas que
são boas

Eramos só as três a respirar
eu e as minhas duas irmãs –
de braços estendidos as palmas das mãos
viradas para cima a receber o sol
que não tinha fim e veio morar nos corredores
que não tinham fim e moravam entre estantes –
altas        pesadas        absolutas –
onde se guardavam todas as crianças do mundo
entre todos os títulos de todos os livros

Isto
é a humanidade que resta –
preparámo-nos para morrer e fechámos os olhos

raquel patriarca
sete.agôsto.doismilecatorze

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