Eramos só os quatro a respirar
o meu pai, eu e as minhas duas irmãs
Nós
apertadas no escuro
que era estreito e morava entre corredores
que eram estreitos e moravam entre estantes –
altas
pesadas
absolutas –
carregadas de todos os títulos de todos os
livros
Ele
solene gutural
com o vagar da velhice e da eternidade
falava da sabedoria do mundo,
do sonho
da viagem da ciência
do
amor da
poesia do
engenho da história
que nos deixava tudo em
herança de guardar e proteger
Isto
é a humanidade que resta –
dizia –
e fechava os olhos e preparava-se para morrer
Eu
desobediente
pensava que gritava mas
a voz sem substância
sumia-se nas páginas de todos os livros
A humanidade vive nas crianças
a alegria e a verdade e a
promessa categórica de todas as coisas que
são boas vive nas crianças
Havemos de querer guardar as crianças
Não haverá crianças para guardar –
dizia o meu pai – os filhos
da tragédia serão sempre velhos e
velhos serão os seus filhos e netos e nenhum
será criança e em todos viverá humanidade
nenhuma
nada que preste de guardar ou proteger
e fechava os olhos e preparava-se para morrer
Morria de pé no meio do silêncio
que era fundo e morava entre corredores
que eram fundos e moravam entre estantes –
altas
pesadas absolutas –
carregadas de todos os títulos de todos os
livros
Lá fora – do outro lado
de paredes que não podíamos ver –
a tragédia uivava e a sua voz era a ruína do
mundo e a desgraça da humanidade
feita em escombros vazios de
toda a semântica ou qualquer préstimo
Lá fora – do outro lado
de paredes que não podíamos ver –
a tragédia invocava razões –
altas
pesadas absolutas
mentiras –
pensava que gritava mas
a voz sem substância
sumia-se nas páginas de todos os livros
Isto é a humanidade que resta –
rezava o meu pai – a vossa
herança de guardar e proteger e
entregar a ninguém a não ser
ao tempo e à memória –
e fechava os olhos e preparava-se para morrer
E nós –
desobedientes –
chorámos a tragédia e engolimos a escuridão
e escondemos em cada livro uma criança
em cada título um nome, escrito de
alegria e de verdade e da
promessa categórica de todas as coisas que
são boas
Eramos só as três a respirar
eu e as minhas duas irmãs –
de braços estendidos as palmas das mãos
viradas para cima a receber o sol
que não tinha fim e veio morar nos corredores
que não tinham fim e moravam entre estantes –
altas
pesadas absolutas –
onde se guardavam todas as crianças do mundo
entre todos os títulos de todos os livros
Isto
é a humanidade que resta –
preparámo-nos para
morrer e fechámos os olhos
raquel patriarca
sete.agôsto.doismilecatorze
*suspiro*... está tão lindo Raquel...!
ResponderEliminarbeijos,
Joana M. ;)
Muito bom, Raquel!
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