quarta-feira, 26 de outubro de 2016

carta de raquel patriarca para a porta n. 42



pela manhã nos ghats de varanasi - uttar pradesh - índia


















Escrevo mal sentada e com os papéis assentes nos joelhos, numa das escadarias que em Varanasi se debruçam com vagar para o Ganges. É cedo, o sol ainda não nasceu e eu, criatura intrometida nos rituais de amanhecer dos outros, estou só aqui, muito quieta excepto nos papéis que já são teus. Às vezes pára-se-me a escrita e fico só a sentir o silêncio. A fazer por entender os gestos que vejo entre as margens e a claridade que sobe ao fundo. As pessoas chegam, sozinhas ou em família, e vêm banhar-se nas águas do rio. Vêm ao encontro do sol, carregadas daquela esperança que só existe nas primeiras horas de cada dia, antes de o cansaço e a desilusão as virem tocar. Descem para o rio como para um altar e vêm purificar-se numa água indizivelmente suja. Pergunto se eles pressentem quão imunda corre a água do rio. Tenho a certeza de que sabem tudo isso. Sabem todas as coisas melhor do que eu. Sabem que o Ganges vai imundo de tudo, menos de maldade e de engano. Penso no que dirias se aqui estivesses comigo. Com que palavras poderíamos desembaraçar as incompreensões na cabeça um do outro.


Há crianças a fazer yôga uns degraus mais abaixo. Trazem o nos olhos mesmo brilho, o mesmo contentamento sereno que aprendi a admirar no rosto dos indianos. Dou por mim a ter pena da sua condição de miséria. E dou por mim a invejar a sua paz interior. Tão desimportados do mundo, tão conhecedores de si.


Não sei onde e quando voltarei a escrever. Aceita um abraço imenso e a certeza de que te trago comigo.

r.

fotografia | vinteeseis.março.doismiledezasseis
texto | sete.outubro.doismiledezasseis
ambos | raquel patriarca

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