pequena viagem de regresso
às palavras que Sophia escreveu para a infância
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A Página da Educação | Inverno 2019 | Nº 214 |
Era uma vez.
Todos os contos infantis de Sophia começam
assim. Era uma vez… Todos excepto, claro, aquele que começa por “A Dinamarca
fica no Norte da Europa”. E esse é o meu preferido.
Escrevo estas linhas já muito perto do fim
da tarde do dia 6 de Novembro de 2019. O fim de tarde em que passam cem anos
sobre o nascimento de Sophia. Um centenário que, sem nenhuma razão plausível, sinto
que me toca de muito perto. Como se fizesse parte de mim, ou eu parte dele. Como
se Sophia, eu, Oriana, a Menina do Mar, Ruy, o Cavaleiro e todos os outros fizéssemos
parte da mesma família. Todos habitantes de uma só alma como de uma casa onde a
porta, sempre aberta, é feita de braços em espera.
Naquele momento sensível e silente que
antecede a escrita, fiz rodar o puxador numa outra porta, sentei-me no chão em
frente a uma estante, e, cumprimentando-os um a um como a velhos amigos, fui reunindo
no colo os contos de Sophia, estações de uma pequena viagem de regresso às
palavras que escreveu para a infância. Para a minha infância. Abri-os e
reconheci-os com vagar. As ilustrações e o toque do papel.
Quando eu era pequena, quando conheci pela
primeira vez a Fada Oriana e o Cavaleiro da Dinamarca, Sophia era para mim essa
escritora com palavras descomplicadas, que soavam tão bem ao contar, e que traziam
tão claros os cenários à minha cabeça. Depois, como o tempo, também eu fui
crescendo. Mais tarde, conheci uma outra Sophia. A poetisa e ensaísta. Lia-a e
admirava-a de longe, perfeita, luminosa, etérea. Não conseguia imaginá-la a ocupar
as mãos em coisas mundanas, a dobrar roupa ou a fazer arroz. Estou até certa de
que, calhando de estarmos só as duas, sentadas na frente uma da outra, numa mesma
sala, eu seria incapaz de lhe dizer uma só palavra.
“A poesia é a minha explicação com o
universo, a minha convivência com as coisas, a minha participação no real, o
meu encontro com as vozes e as imagens. […] E no quadro sensível do poema vejo
para onde vou, reconheço o meu caminho, o meu reino, a minha vida.” Foi assim
que se deu a ler em Arte Poética II e, para mim, Sophia passou a habitar a
substância do poema.
E agora, com estes livros de volta no meu
colo (alguns meio desfeitos, um par deles novos por terem vindo substituir outros,
entretanto perdidos), volto a senti-la muito perto. Tão perto que juraria nunca
ter havido distância ou ausência.
Inesperadamente, mais do que reencontrar a
minha Sophia nos meus livros, reencontrei-me a mim nos livros dela. Descobri
que, afinal, sempre fizeram, e fazem ainda, parte da minha casa. Aquela mesma casa
em abraço, que se constrói connosco por dentro e passa a morar em nós.
Certa vez, ouvi a Hélia Correia, brilhante escritora
– tenho para mim que os escritores partilham uma alma muito grande, como partes
de algo maior e, por isso, gosto de os escutar como quem escuta a canção da
chuva. Ouvi a Hélia Correia, dizia eu, que comparava as palavras de Sophia a
tesouros que corremos o risco de estragar assim que lhes tocamos. Invocava a
circunstância de vermos brilhantes, belas e intocadas as pedrinhas na beira do
mar, cobertas por uma camada fina e transparente de água. Se nos apropriarmos
delas, se estendermos as mãos para lhes pegar, começam logo a perder o brilho e
a beleza de antes. Reconheci muita verdade no que ouvia mas, ao mesmo tempo,
senti o pensamento fugir-me para as páginas d’A Menina do Mar, senti-me
de pés molhados e frios, em descoberta dos carreirinhos de água que correm pela
praia. Havia pedrinhas e conchas e eu peguei em todas para as guardar para mim,
enquanto na minha cabeça soava uma voz delicada que dizia “Tu nunca foste ao
fundo do mar e não sabes como lá tudo é bonito. Há florestas de algas, jardins
de anémonas, prados de conchas. Há cavalos marinhos suspensos na água com ar espantado,
como pontos de interrogação. Há flores que parecem animais e animais que
parecem flores. Há grutas misteriosas, azuis-escuras, roxas, verdes e há
planícies sem fim de areia fina, branca, lisa” (A menina do mar, p. 15).
E que livres eram o Menino da Terra e a
Menina do Mar. Que livres eram Ruy e os ciganos. Como os meus pensamentos que
voavam entre o fundo do mar e os prados onde as “fontes corriam em cascata, o musgo
cobria as pedras enormes, um curto vento agreste surgia entre as árvores” (Os
ciganos, p. 22). E enquanto Ruy “à noite abria a janela do seu quarto,
respirava o vento que vinha de longe, olhava as estrelas e pensava na liberdade”
(Os Ciganos, p. 9), eu sonhava também, com tantas coisas que já nem me
lembro, tanto me fazia que fossem possíveis ou impossíveis. Porque os sonhos,
como os ciganos do conto, não sossegam. “Nós não moramos aqui nem em nenhum
outro lugar [...] Nós não moramos, nós vamos” (Os ciganos, p. 23). E eu
ia também, do fundo do mar para os bosques encantados, e daí para os parques e
jardins onde as árvores eram todas muito dignas e as flores todas muito
humanas. Onde as estátuas sonhavam durante o dia e ganhavam vida pelas horas da
noite. Onde a alegria chega a todas as criaturas por igual e “tudo é uma festa:
é uma festa o orvalho da manhã, é uma festa a luz do sol, é uma festa a brisa
da tarde, é uma festa a sombra da noite” (O Rapaz de Bronze, p. 24).
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Os três Reis do Oriente | ilustração de Noronha da Costa cortesia da Editora Figueirinhas |
Certa vez ouvi o professor Diogo Alcoforado,
brilhante filósofo – tenho para mim que os filósofos partilham uma alma muito
grande, como partes de algo maior e, por isso, gosto de os escutar como quem
escuta o beijo do vento. Ouvi o professor Diogo Alcoforado, dizia eu, a realçar
o cuidado rigoroso e comprometido de Sophia, a forma como convivem interligadas
as dimensões ética e estética em tudo o que escreveu. Reconheci muita verdade no
que ouvia e senti o ecoar dos versos de amor pela verdade, pela integridade,
pela dignidade. “Porque os outros se mascaram mas tu não / Porque os outros
usam a virtude / Para comprar o que não tem perdão / Porque os outros têm medo
mas tu não” (Porque os outros se mascaram mas tu não, Mar Novo, 1958) e “Com
fúria e raiva acuso o demagogo / E o seu capitalismo das palavras // Pois é
preciso saber que a palavra é sagrada / Que de longe muito longe um povo a
trouxe / E nela pôs sua alma confiada” (Com fúria e raiva, O Nome das Coisas,
1977).
E, porque os contos trazem a mesma medida
de ética e estética, lembrei-me da pequena ironia escondida nos dilemas da Isabel
e do Anão d’A Floresta que, na necessidade de encontrarem alguém verdadeiramente
merecedor de receber o grande tesouro (que fora de malfeitores e, depois, de
frades, para se quedar, finalmente, à guarda do Anão e da Menina), tenham
encontrado apenas dois homens dignos. O músico professor que também faz versos,
e o cientista que tem tanto de sábio como de louco. “Quando fores crescida –
disse o professor de música – escreve esta história. As coisas que passam ficam
vivas para sempre numa história escrita” (A Floresta, p. 67). E é tal e
qual assim. As coisas que passam ficam vivas na história escrita e ficam vivas
em nós que a lemos. Mesmo sem nos apercebermos do que está a acontecer, as histórias
vivem em nós, e não faz diferença que contem “coisas que passam” ou que se
imaginam.
E não são só as histórias, são também as
personagens.
Percebi, algures durante esta minha viagem,
que tenho andado a seguir as pisadas da pequena Oriana. Parece infantil, bem
sei, mas era uma criança quando a conheci e, sem nunca duvidar da sua real
existência, tive muita pena de não ser capaz de a ver para podermos brincar as
duas. Era muito arrumado aquele seu mundo de bem e de mal, como se alguém o
tivesse penteado de risco ao meio. “Há duas espécies de fadas: as fadas boas e
as fadas más. As fadas boas fazem coisas boas e as fadas más fazem coisas más”
(A Fada Oriana, p. 7). São palavras tão simples e directas, tão categóricas
que é quase impossível uma criança não entender que lhe dizem: tens aqui dois
caminhos, vês? Agora vai e escolhe um. Que bonito era pensar que “as fadas boas
regam as flores com orvalho, acendem o lume aos velhos, seguram pelo bibe as
crianças que vão cair ao rio, encantam os jardins, dançam no ar, inventam sonhos
e, à noite, põem moedas de oiro dentro dos sapatos dos pobres” (A Fada Oriana,
p. 7). Deve ter sido logo no fim do parágrafo que eu, criança ainda, decidi que
havia de ser uma fada boa. Isso mesmo. Quando for grande quero encantar os dias
e encantar as noites. Claro, não sei como manipular o orvalho nem sei onde hoje
se arranjam moedas de ouro para esconder nos sapatos dos pobres, mas há sempre
algo menos metafórico que pode melhorar o dia alguém. Uma palavra, um abraço ou
um sorriso. Sobretudo um sorriso. Ou uma história bem contada, um xaile feito
de tricô e ternura. Procuro, mais do que qualquer outra coisa, não dar muita
importância a pérolas e cumprir as minhas promessas. Claro que eu, como a Oriana
e, suponho, como a maioria das pessoas, tenho perdido muitas vezes as asas. E,
também, como ela, procuro recuperá-las, com teimosia e dignidade, em doses talvez
iguais.
Percebo agora que trago a Oriana ao colo, ou,
então, é ela que me carrega ao colo a mim. Aprendi com ela que é fácil ser-se
digno quando o mundo nos confere dignidade; o desafio está em sermos dignos
mesmo quando nos tratam indignamente.
E claro, esconde-se cá em casa (quem sabe,
reflectida entre os copos do louceiro) a pequena Joana que, fiel ao amigo e perante
a oportunidade de fazer um gesto inteiramente bom, não conseguiu esperar pelo nascer
do sol. “Amanhã vou-lhe dar os meus presentes – disse ela. Depois suspirou e
pensou: Amanhã não é a mesma coisa. Hoje é que é a Noite de Natal. […] Hoje, –
pensou – tenho de ir hoje. Tenho de ir lá agora, esta noite. Para que ele tenha
presentes na Noite e Natal” (A Noite e Natal, p. 24-25).
Certa vez ouvi a Luísa Malato, brilhante professora
– tenho para mim que os professores partilham uma alma muito grande, como partes
de algo maior e, por isso, gosto de os escutar como quem aguarda as ondas do mar.
Ouvi a Luísa Malato, dizia eu, falar da inequívoca dimensão literária de toda a
escrita de Sophia. Reconheci muita verdade no que ouvia e senti-me transportada
para o passado longínquo em que viveram os Reis a quem chamamos de Magos. Revivi
a sensação de, criança ainda, receber um texto que parecia escrito entre
iguais. Nenhum sintoma de pequeneza, palavras apenas, numa beleza clara de luz
e de espanto.
“Escutava o crescer do tempo [dizia]. A
solidão criava em seu redor um transparente espaço de limpidez onde os instantes
avançavam um por um e o universo inteiro parecia atento. O silêncio era como a
mesma palavra inumeravelmente repetida” (Os três Reis do Oriente, p. 13).
Quando eu era criança, nós não estávamos habituados a que nos escrevessem assim
e era, numa palavra, encantador.
Mais do que as palavras, as preocupações
eram elevadas, os sentimentos eram complexos. Era impossível não me sentir a
crescer, igual ao tempo, igual aos sonhos dos Reis que, em vigília, aguardavam
a chegada da estrela. “A cidade dormia, escura e silenciosa, enrolada em ruelas
e confusas escadas. Na grande avenida dos templos já ninguém caminhava. [...] E
sobre o mundo do sono, sobre a sombra intrincada dos sonhos onde os homens se
perdiam tacteando, como num labirinto espesso, húmido e movediço, a estrela
acendia, jovem, trémula e deslumbrada, a sua alegria” (Os três Reis do
Oriente, p. 29).
E, depois, há aquele jeito único de escrever
as árvores, o mar, a lua como ninguém mais escreve. De elevar à categoria de maravilhas
as essências mais simples. “O povo dessa ilha sentia-se feliz e orgulhoso por
possuir uma árvore tão grande e tão bela. Uma árvore enorme que crescia numa
ilha muito pequenina” (A árvore, p. 11). Eu lia e acreditava na
simplicidade de ser feliz. E, mesmo quando a árvore se transformou em barca, o
contentamento perdurou porque “às vezes, nas noites calmas de Verão ou de
Outono grupos de pessoas embarcavam e iam até ao largo ver a lua cheia sobre o
mar” (A árvore, p. 21). Hoje ainda acredito que a felicidade há-de ser
algo simples. Mas também compreendo como é fácil ver tudo a complicar-se à
nossa frente, como nuvens que escondem as ramadas das árvores e o reflexo da
lua no mar, e tenho muitas saudades da simplicidade feliz que, na maior parte
dos dias, só vivem nas páginas dos meus livros.
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A Noite de Natal | ilustração de Júlio Resende cortesia da Editora Figueirinhas |
Certa vez ouvi a Ana Luísa Amaral,
brilhante poetisa – tenho para mim que os poetas partilham uma alma muito
grande, como partes de algo maior e, por isso, gosto de os escutar como quem sente
o estender dos raios de sol. Ouvi a Ana Luísa Amaral, dizia eu, que falava do
Cavaleiro da Dinamarca e contava passagens inteiras de memória como a dizer poemas.
Mostrava o poder de encantamento que têm as palavras de Sophia, de como nos
dançam nos sentidos antes mesmo de lhes darmos o sentido que trazem às frases. Reconheci
muita verdade no que ouvia e pensei em como a viajem do Cavaleiro nos leva a
conhecer as palavras e histórias encantadas de outros poetas, de outros
sonhadores. Distinguimos os ecos de Shakespeare e de Dante, os traços e as
cores de Giotto, as descobertas e desventuras de Pêro Dias, irmão de
Bartolomeu, aquele que transformou, para sempre, a Tormenta em Esperança.
Guardo muita ternura àquele viajante que
ouço, com a toada doce e pausada da Ana Luísa Amaral, a rezar “pelo fim das
misérias e das guerras, […] pela paz e pela alegria do mundo.” Tenho-lhe
ternura porque quer ser bom, porque “pediu a Deus que o fizesse um homem de boa
vontade, um homem de vontade clara e direita, capaz de amar os outros” (O
Cavaleira da Dinamarca, p. 11). Não me é fácil a fé que acompanha o Cavaleiro,
que acompanhava Sophia, mas reconheço a verdade intrínseca nos propósitos dele
e nas palavras dela.
Não sei bem o que é. Talvez o gostar muito
do Natal, talvez o gostar desmesuradamente de ter junta toda a família, mas a
demanda do Cavaleiro da Dinamarca toca-me em todas as cordas e deixa-me sempre
a precisar de um abraço.
Quem sabe se é a resistência para fazer cumprida
a promessa de retorno. Aquele sonho de completude, o sentimento tão humano, essencial
e familiar de vencer a lonjura, a mudez e a escuridão em que tantas vezes nos
perdemos. O desejo de fazer recuar a treva, de ver “a maior árvore da floresta
coberta de luzes” (O Cavaleiro da Dinamarca, p. 72). Uma árvore como um
farol de milagre que é sempre possível para todos. Uma claridade muito alta e
muito forte, a luz e que, finalmente, nos carrega de volta a casa.
Raquel Patriarca
in: A Página da Educação | Inverno de 2019 Nº 214 | pp. 46-49
esta viagem faz paragem nas seguintes estações:
*Os três Reis do
Oriente, p. 13.
A Menina do Mar. Il.
Luís Noronha da Costa. Porto: Figueirinhas, D.L. 2004.
A Fada Oriana. Il.
Teresa Calem. 37ª ed. Porto: Porto Editora, 2014.
A Noite de Natal.
Il. Júlio Resende. Porto: Figueirinhas, 2004.
O Cavaleiro da
Dinamarca. Il. Armando Alves.37ª ed. Porto: Figueirinhas,1994.
O Rapaz de Bronze.
Il. Fedra Santos. Porto. Figueirinhas, D.L. 2004.
Os Três Reis do
Oriente. Il. Fedra Santos. Porto: Figueirinhas, D.L. 2002.
A Floresta. Il.
Teresa Olazabal Cabral. 35ª ed. Porto: Figueirinhas, 2004.
A Árvore. Il. Armando
Alves. 10ª ed. Porto: Figueirinhas, 1999.
Os Ciganos. Co-aut.
Pedro Sousa Tavares. Il. Danuta Wojciechowska. Porto: Porto editora, 2013.