lembro-me às vezes
– sem quando nem porquê –
do sabor que tinha
o miolo do pão do dia anterior.
mas não sei se era
o pão ou o dia
que tinha
aquele sabor.
e nós as duas
sentadas,
na mesa da cozinha
à janela
de pernas cruzadas,
de pijama e pantufas
remelas nos olhos
cabeças despenteadas.
jogávamos a adivinhar
a cor dos carros
que haviam de passar.
um carro branco, um carro azul
e outro vermelho
– amassado e sem pára-choques –
muito velho,
e uma carrinha preta
logo a seguir.
afinal era uma lambreta
com imensa tralha mal atada atrás
quase quase a cair.
ah pois!
de vez em quando,
uma carroça de bois.
tu acertavas tudo
e eu…
quase nada.
pergunto-me hoje
se fazias tu batota
ou estava eu muito ensonada.
não importa, pois não?
se ainda trago comigo
o sabor do miolo de pão.
eram o mundo inteiro:
uma mesa e uma janela.
e eu acreditava na magia
que passava na estrada,
disfarçada de furgoneta amarela.
lembro-me às vezes
– sem quando nem porquê –
do sabor dessas manhãs,
em que não éramos
ainda nada
nem ninguém.
apenas irmãs.
à minha irmã
raquel patriarca
vinteeseis.agosto.doismilenove