sexta-feira, 25 de novembro de 2016

A utilidade do inútil de Nuccio Ordine



























[a utilidade do inútil / nuccio ordine; tradução de margarida periquito; ensaio de abraham flexner; capa de andré da loba. – matosinhos : faktoria k dos livros, 2016. – 204 p. ; 14 cm. – colecção ágora k , 1. - isbn 978-989-99583-1-9.]




esta semana esteve em Portugal o professor Nuccio Ordine, uma daquelas pessoas que consegue, sem pestanejos nem hesitações, explicar, singela e acutilantemente, todas as coisas que eu levo metade da vida a ruminar e que queria aspergir ao planeta, com um vigor militante todas as manhãs na varanda da frente, mas não consigo. 

veio de visita e veio fazer sessões de lançamento do livro A utilidade do inútil. as sessões, que tiveram lugar em Coimbra, no Porto e em Lisboa, transformaram-se numa espécie de aulas de humanidade e de amor à cultura e à arte, cheias de palavras muito sábias e muito sentidas, as mesmas palavras que urgentemente se devem entregar a este mundo que me parece caminhar tão ao contrário.

o livro é, evidentemente, de leitura e absorção obrigatórias.

fica uma pequena biografia do professor Ordine, de quem gostei muitíssimo e só tenho pena de não lho ter conseguido dizer. não foi o eu falar tão pouco italiano como ele fala português, foi mais aquela falta de presença de espírito de que sofro endemicamente. aquele entupimento patético de quem quer dizer tudo e percebe, de repente, que se esqueceu do próprio nome…

fica, também, a sinopse divulgada pela Faktoria K de Livros, uma chancela da Kalandraka Portugal, responsável por esta excelente iniciativa editorial que vem resolver-nos todos os dilemas para as ofertas de natal. 

gingóbel. 

Nuccio Ordine (Diamante, Calabria, 1958) 
Professor, filósofo e especialista do período do Renascimento e da obra do pensador Giordano Bruno, Nuccio Ordine é docente de Literatura Italiana na Universidade de Calabria. Colabora com diversas instituições académicas europeias como o Centro para o Estudo do Renascimento Italiano da Universidade de Harvard ou a Fundação Alexander von Humboldt, e escreve periodicamente no diário Corriere della Sera. É autor de diversos livros traduzidos e publicados em vários países. Em 2007, recebeu o Prémio Rombiolo pelo livro Contro il Vangelo armato. É membro honorário do Instituto de Filosofia da Academia Russa de Ciências e foi, ainda, agraciado com os títulos de Cavaleiro da Legião de Honra de França e de Comendador da Ordem de Mérito da República Italiana, bem como com o grau académico de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul no Brasil. 

Sinopse 
"Existem saberes absolutos que – precisamente pela sua natureza gratuita e desinteressada, longe de qualquer vínculo prático e comercial – podem ter um papel fundamental na educação do espírito e no desenvolvimento cívico e cultural da humanidade. Dentro deste contexto, considero útil tudo aquilo que nos ajuda a tornarmo-nos melhores…"

A utilidade do inútil é um manifesto que reúne citações e reflexões que Nuccio Ordine foi armazenando ao longo da sua vasta experiência como professor e investigador. Esta obra está estruturada em três partes: uma primeira que aborda a útil inutilidade da literatura, para a qual contribuem as considerações de uma série de personalidades da esfera da cultura que, ao longo da história, se debruçaram sobre este tema; uma segunda parte que analisa a repercussão da lógica do lucro no mundo do ensino, da investigação e das atividades culturais em geral, na perspetiva daquilo a que o autor qualifica criticamente como “universidade-empresa” e “alunos-clientes”; e uma terceira parte que congrega a voz de alguns clássicos para mostrar o papel ilusório da posse e os seus múltiplos efeitos devastadores sobre a dignitas hominis, o amor e a verdade, através da promoção daquilo a que Ordine apelida de “ilusão da riqueza” e “prostituição da sapiência”.

Nuccio Ordine rejeita a ditadura do lucro e do utilitarismo, que invadiu o nosso quotidiano, e propõe uma profunda reflexão sobre a importância daqueles conhecimentos que, aparentemente, não produzem benefícios materiais numa sociedade global em que só é considerado útil aquilo que é passível de ser transformado em rendimento monetário ou num outro tipo de compensação material e quantificável. Face à crise do sistema, este livro convida os leitores a pensar que – agora, e mais do que nunca – são necessários esses saberes que alimentam o espírito, que reivindicam o bem comum, o respeito pelo próximo, a solidariedade e a paz.

A utilidade do inútil é um manifesto atual e desafiador que apela à luta contra a corrupção causada pelo dinheiro e pelo poder.



quarta-feira, 9 de novembro de 2016

entre 1989 e 2016 passaram vinte e sete anos



Hoje é dia nove de novembro de dois mil e dezasseis e, pelas nove da manhã, li a notícia de que a alimária alarve do Donald Trump tinha vencido as eleições presidenciais nos Estados Unidos da América. (Vou passar à frente a cena das 9 horas da manhã do dia 9 de 9embro e da associação esotérica ao número da besta ao contrário.)
Primeiro foi o choque, depois a incredulidade, depois outra vez o choque, depois o medo, a revolta, a tristeza e, finalmente, a negação. Por essa altura, decidi só trabalhar muito e fazer de conta que não foi nada. Que o dia não aconteceu. Trabalhei e fiz de conta muito mal, como seria de esperar. Falei com uma amiga (foi a Teresa Castro) que estava tão triste e assustada como eu. Ambas incapazes do consolo mútuo que era preciso. Entretanto fui correr e ocorreu-me algo que disse uma vez o Pedro Mexia, e que explicava a compulsão de escrever pela necessidade de fazer sentido das coisas. E agora, ocorre-me escrever o seguinte.
 
Tenho um amigo, com quem também falei hoje, historiador como eu mas melhor ele não me deu ordem de citação por isso ficará anónimo (foi o Flávio Miranda) que, perante o meu choque, medo e tristeza, apontou o sentimento mais positivo do privilégio que é, para os profissionais da nossa arte, poder testemunhar e, quem sabe registar, qual era a palavra?... pois, o Apocalipse.
 
Eu sei que ele estava a brincar com aquelas coisas da ironia e do riso. Quem ri não tem medo, e isso tudo. Também sei que, no metatexto, ele esconde (às vezes não esconde) uma daquelas palavras gordas que dão jeito quando vamos descalços contra a esquina da cama, que começam em f acabam em e, e no meio tem oda-s. É, digamos, a palavra do dia. O problema é que os palavrões não me servem. Nem para desabafo nem para consolo.

Eu acordei a sério para a política e para o mundo em 1989, com a libertação de Nelson Mandela e a queda do Muro de Berlim. Tinha quinze anos, ainda não votava mas sentia o arrepio da expectativa de algo bom. Um arrepio como aqueles que sentimos ao ouvir a Carmina Burana, cantada ao vivo por um coro que está de pé a três metros da nossa testa.
Houve outros arrepios assim nos anos que passaram. Momentos universais e heróis que reconhecia e admirava como tal. Houve aquela manhã em que dei um beijinho ao Xanana Gusmão já depois do Prémio Nobel da Paz. Mas também é verdade que, nos últimos anos, dependemos cada vez mais do Cristiano Ronaldo para podermos apontar um herói universal que seja imediata e universalmente reconhecido. A evolução natural desta situação é que se vá perdendo a capacidade de reconhecer um herói. Ou um vilão. Ou um monte de excremento.
 
De volta ao apocalipse, e ainda a correr, lembrei-me daquelas séries sobre invasões de zombies. Não são ficção científica. São uma metáfora de má qualidade para aquilo que já aconteceu. Os zombies somos nós. A massa decisória que não tem capacidade de decisão. Uma humanidade de criaturas que, em vez de torcidas e ensanguentadas nos bracinhos, caminham muito direitas e penteadas, (ou com capachinhos ridículos), completamente estropiadas dos miolos. Desfigurados do poder de análise e de crítica, da capacidade de ponderar responsabilidades e consequências. Deficientes de saber exactamente aquilo sobre o que estamos a opinar. 
É a diferença entre sermos enganados e deixarmo-nos enganar. É a diferença entre algures acreditar num vilão e votar num farsante. Porque um vilão, digno do adjectivo, tem de ter qualidades – o inteligente, o ardiloso, o que for – para as dedicar à prática do mal. Este espécimen não vale nada. Queria fazer uma analogia com cuspo ou assim, mas não há nada. É tudo falso. É, em tudo, falso.

A questão é que o eleitorado que elegeu Donald Trump não nasceu do chão durante os meses da campanha. É formado pelas mesmas pessoas que vêm, há décadas, a proibir a leitura da Alice no País das Maravilhas e do Winnie the Pooh, com o argumento de que dar alma e fala aos animais é pecado. E a geração seguinte vai ser criada por esta até à idade do voto, com a agravante de nunca ter lido a Alice ou o Pooh. É formado pelas mesmas pessoas que se confortam com a ilusão de que são melhores que os outros. Sendo os outros aqueles esquisitos que falam uma língua diferente, ou têm outra cor, ou outra religião, ou outro estilo de vida, que tomam decisões e seguem caminhos diferentes (como se atrevem?). É formado pelas mesmas pessoas que se acham mais merecedoras de recursos, de empregos, de regalias. Que se acham mais senhoras do mundo. Ainda que desconheçam por completo esse mundo que o Universo, por alguma razão, lhes deve. São aquelas pessoas que todos conhecemos e que dizem, muitas vezes, que é preciso mudar ‘as coisas’. Para, logo a seguir, apontarem – nos outros – ‘as coisas’ que é preciso mudar. Nunca em si. Cada uma é, claro, um exemplo acabado de perfeição. Um modelo a replicar e a impor.
 
O pior inimigo é, evidentemente, a ignorância. É investir em reality shows em vez de documentários, e em telemóveis topo de gama em vez de livros. Com isto não quero dizer que só se deve assistir a cinema francês e teatro clássico. Parece estúpido dito assim (e é preciso não entender nada como absoluto), mas a minha geração usufruiu de um treino maravilhoso de intelectualidade televisiva que contava, em horário nobre, com os Monty Python e os Jogos Sem Fronteiras.
Hoje, até os noticiários são burros. E os debates, mais burros ainda. Moderados por gente burra, que convida mais gente burra e, naqueles casos raros em que aparece alguém a fazer um comentário sério, o burro do moderador vem logo distorcer e anular tudo, para que, ‘lá em casa’, os burros (que somos nós) possam entender... ou para que não mudem de canal.

Quanto mais fácil for a manipulação das nossas cabeças, mais fácil será preverter a democracia.
É o mesmo de sempre e basta não fazermos nada. É só esperar e mais nada. A porcaria vai levedando e, em breve, o Donald Trump não passará de uma primeira onda no imenso oceano de esterco em que o futuro nos vai mergulhar.
Nada é assim simples, claro. Mas hoje não dá para mais. Hoje é impossível a poesia e sinto o arrepio de expectativa de algo mau. Não consigo encontrar, em lado nenhum, o herói que me há-de repor a esperança. Nem quero historiar o Apocalipse. Não sei, sequer, como hei-de explicar tudo isto ao meu filho, só assim de conversa e sem notas de rodapé. E sim, o Cristiano Ronaldo seria, de longe, uma melhor escolha para a presidência dos Estados Unidos. Seja como for, é tudo indiferente. Isto tem muitas linhas e ninguém vai ler até ao fim. 


raquel patriarca | nove.novembro.doismiledezasseis

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

cartas de viagem | varanasi | índia

a mãe ganges - na antiga benares - varanasi - índia

















fotografia | raquel patriarca | vinteeseis.março.doismiledezasseis

quarta-feira, 26 de outubro de 2016

carta de raquel patriarca para a porta n. 42



pela manhã nos ghats de varanasi - uttar pradesh - índia


















Escrevo mal sentada e com os papéis assentes nos joelhos, numa das escadarias que em Varanasi se debruçam com vagar para o Ganges. É cedo, o sol ainda não nasceu e eu, criatura intrometida nos rituais de amanhecer dos outros, estou só aqui, muito quieta excepto nos papéis que já são teus. Às vezes pára-se-me a escrita e fico só a sentir o silêncio. A fazer por entender os gestos que vejo entre as margens e a claridade que sobe ao fundo. As pessoas chegam, sozinhas ou em família, e vêm banhar-se nas águas do rio. Vêm ao encontro do sol, carregadas daquela esperança que só existe nas primeiras horas de cada dia, antes de o cansaço e a desilusão as virem tocar. Descem para o rio como para um altar e vêm purificar-se numa água indizivelmente suja. Pergunto se eles pressentem quão imunda corre a água do rio. Tenho a certeza de que sabem tudo isso. Sabem todas as coisas melhor do que eu. Sabem que o Ganges vai imundo de tudo, menos de maldade e de engano. Penso no que dirias se aqui estivesses comigo. Com que palavras poderíamos desembaraçar as incompreensões na cabeça um do outro.


Há crianças a fazer yôga uns degraus mais abaixo. Trazem o nos olhos mesmo brilho, o mesmo contentamento sereno que aprendi a admirar no rosto dos indianos. Dou por mim a ter pena da sua condição de miséria. E dou por mim a invejar a sua paz interior. Tão desimportados do mundo, tão conhecedores de si.


Não sei onde e quando voltarei a escrever. Aceita um abraço imenso e a certeza de que te trago comigo.

r.

fotografia | vinteeseis.março.doismiledezasseis
texto | sete.outubro.doismiledezasseis
ambos | raquel patriarca