quarta-feira, 26 de agosto de 2009

miolo de pão

.
lembro-me às vezes
– sem quando nem porquê –
do sabor que tinha
o miolo do pão do dia anterior.
mas não sei se era
o pão ou o dia
que tinha
aquele sabor.

e nós as duas
sentadas,
na mesa da cozinha
à janela
de pernas cruzadas,
de pijama e pantufas
remelas nos olhos
cabeças despenteadas.

jogávamos a adivinhar
a cor dos carros
que haviam de passar.
um carro branco, um carro azul
e outro vermelho
– amassado e sem pára-choques –
muito velho,
e uma carrinha preta
logo a seguir.
afinal era uma lambreta
com imensa tralha mal atada atrás
quase quase a cair.
ah pois!
de vez em quando,
uma carroça de bois.

tu acertavas tudo
e eu…
quase nada.
pergunto-me hoje
se fazias tu batota
ou estava eu muito ensonada.
não importa, pois não?
se ainda trago comigo
o sabor do miolo de pão.

eram o mundo inteiro:
uma mesa e uma janela.
e eu acreditava na magia
que passava na estrada,
disfarçada de furgoneta amarela.

lembro-me às vezes
– sem quando nem porquê –
do sabor dessas manhãs,
em que não éramos
ainda nada
nem ninguém.
apenas irmãs.


à minha irmã
raquel patriarca
vinteeseis.agosto.doismilenove

terça-feira, 25 de agosto de 2009

domingo, 23 de agosto de 2009

photo grafia XXX

"travessia"
atlantic ferries - rio sado - entre troia e setúbal

raquel patriarca
vinteetrês.agosto.doismilenove

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

sentimento do mundo

.
hoje esteve muito calor. muito mais do que é normal. no fim do dia – quando estava mais fresco – reguei o jardim. reguei-o com carinho e consciência de que aquele era um acto de respeito e comunhão com a natureza. apanhei as ervas daninhas e deitei-as fora. varri o pátio e conversei com o vaso da malva que me parecia desanimada.
e senti que o mundo era bom.

hoje reguei o jardim e – enquanto imaginava sorrisos de agradecimento da relva, das roseiras, das magnólias e da salsa – enrolei a mangueira. enrolei a mangueira que parecia nunca mais acabar e que deve ser enrolada direitinha para depois ser pendurada. enrolei a mangueira, comprida e pesada, com os braços no ar deixando escorrer a água que ainda lá corria dentro. pendurei-a no lugar certo na parede ao fundo da garagem.
e senti que o mundo era bom.

hoje vim para dentro bem disposta, invadida de um sentimento de missão e entrega. visitei a despensa e o frigorífico, amontoei na banca ingredientes ao calha, vesti o avental e comecei a fazer o jantar. passado pouco tempo a cozinha começou cheirar bem e os rapazes estavam por perto e com fome.
e senti que o mundo era bom.

hoje andava por casa como uma rainha num castelo. cantarolava entre um tempero no tacho e uma arrumadela nos brinquedos. estendi a toalha na mesa, espalhei pratos, copos, talheres e guardanapos. chamei os rapazes e jantámos.
e senti que o mundo era bom.

hoje, ao sair da cozinha, tropecei numa coisa. sem saber bem porquê passou-me pelos olhos uma imagem do monte everest em várias modalidades de cores e texturas. hoje, ao sair da cozinha, tropecei numa cesta de roupa para passar a ferro. fiquei ali parada por uns momentos. fiquei sem saber o que fazer.
e senti que o mundo era uma trampa.
.
raquel patriarca
onze.agosto.doismilenove

viagem medieval em terra de santa maria








"viagem medieval"
santa maria da feira - de trinta de julho a nove de agosto

fotografias:
raquel patriarca
oito.agosto.doismilenove

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

excertos

pareço uma casca
seca e vazia
sem ti
cabeça baixa
olhar fixo nas mãos
pousadas inertes no colo
entre os dedos
uma carta
que te escrevi
.
passam pessoas
têm propósito
razão e certeza
eu não me mexo
tenho frio
desconforto
estranheza
.
pergunto-me
para que serve a carta
só faz prova
da mágoa
da saudade
que deixas quando partes
e eu
estou farta
.

tenho nas mãos
papéis de nada
meros excertos
mal explicados
de tudo o que
um dia
te quis dizer
não sei que lhes faça
agora que sei
que não os queres ler

.
raquel patriarca
seis.agosto.doismilenove

photo grafia XXIX

"medusa"
escultura - rotunda de matosinhos

raquel patriarca
trinta.julho.doismilenove

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

des conhecer

.
já não ouves
o que
penso
nem conheces

o que
sinto

e já não lês
nos meus olhos

baços
as pequenas

verdades
com que eu

te minto
.

raquel patriarca
cinco.agosto.doismilenove