segunda-feira, 18 de novembro de 2019

A Bactéria das Histórias


mediação da leitura para a infância como uma actividade de contágio
(reflexão em quatro movimentos com origem no livro)

Raquel Patriarca

a missão

Primeiro Movimento: Sobre a Missão
Venho hoje falar-vos dessa maravilhosa actividade que é a mediação da leitura. Claro que, dito assim, “eu sou mediadora da leitura de livros”, não soa a uma profissão muito desafiante. Mesmo dizendo “adoro aquilo que faço, até tenho jeito e sei o que estou a fazer”, a mediação da leitura é, ainda, uma actividade de… bem, de totós.
Aposto que nenhuma criança sonha ser um mediador da leitura quando crescer. Nessa matéria, os bibliotecários continuam a perder para os bombeiros, os palhaços e, claro, os astronautas. O que esta malta ainda não sabe é que viver dentro dos livros é uma forma quase tão eficaz de andar sempre na lua como ser astronauta.
Entendo a missão de mediador da leitura, e não uso a palavra ‘missão’ ao acaso, como um conjunto integrado de acções, uma espécie de processo que compreende várias etapas e que, no final, tem como objectivo o transporte de uma história ou de um livro entre as estantes da biblioteca e a alma de alguém.
Claro, como toda a arte que se preze, estas coisas dos livros e da leitura são muitas vezes empurradas para o campo do inútil e isso, além de triste, é grave. Porque a acepção de ‘utilidade’ que se gasta hoje em dia traz sempre por arrasto três critérios que viciam o juízo: o da visibilidade – que atribui valor apenas àquilo que é visível, e quanto mais visível melhor –; o do imediatismo – que entende como útil somente aquilo que demonstra utilidade agora –; e o da rentabilidade – que só vê utilidade naquilo que é rentável, de preferência rentável de forma bem visível, e agora.
Estou a perder, pelo menos, três minutos dos vinte que me deram a falar nisto porque me parece importante, e útil, termos presente que a esmagadora maioria do trabalho que fazemos é invisível e inquantificável, os frutos só se colhem passado muito tempo e as, mais das vezes, longe da nossa vista.
É por ser uma ‘missão’ que estes critérios não se aplicam à mediação da leitura. Como qualquer ‘missão’, é um labor em que muitas vezes parece que entregamos mais do que trazemos. Mas só parece. Nós sabemos que não é assim, porque percebemos o momento “sensitivo e consciente” em que tocamos alguém com uma história ou um poema. Porque o conhecimento do passado e a experiência de incontáveis bibliotecários, desde a Biblioteca de Alexandria até à Biblioteca Municipal da Maia, nos diz que assim é. Porque acreditamos na “fé poética”.
O problema é que vivemos num mundo em que os profissionais bem-sucedidos se medem pelos mesmos três critérios do visível, do imediato e do rentável. O mesmo mundo que nos trata com o paternalismo próprio que se guarda aos que não ‘vivem no mundo real’. Mas esse problema é deles e não nosso. Porque nós acreditamos no valor intrínseco daquilo que fazemos.
Na verdade, de totós só temos a aparência. O que conta é o que trazemos de pensamento livre e sábio, e de espírito missionário e guerreiro.
Quando ouço aquela pergunta típica do “para que serve?” Para que serve a leitura? Para que serve a arte? Para que serve a poesia? Para que serve a filosofia? Bem, para fazer perguntas melhores, é a resposta que me ocorre logo. Mas a melhor resposta, a que trago sempre comigo e que nunca me falha, é a do filósofo Núccio Ordine, que diz, simplesmente: A arte, a literatura, a filosofia não servem. As actividades da criação e do pensamento não são servis, sabem apenas libertar. Nós não vivemos no mundo real porque escolhemos não o servir. Escolhemos o caminho, bem mais sinuoso, de ajudar a criar um mundo real melhor.
Seja como for, e sabendo à partida que cada um de nós alimentou o sonho secreto de ser astronauta, e que só está aqui hoje porque esse propósito correu mal, o que me proponho a fazer é, em primeiro lugar, provar-vos que a mediação da leitura é uma actividade muitíssimo pertinente, honrada e gratificante, cheia de beleza e significado. E, em segundo, partilhar convosco os dois elementos que penso serem essenciais para um bom cumprimento desta missão.

a riqueza

Segundo Movimento: Sobre a Riqueza
Lembram-se de vos ter dito que os frutos do trabalho do mediador não se podem quantificar no imediato e dentro dos modelos convencionais? Isto não significa que não haja formas de percebermos como é importante aquilo que fazemos.
Temos, hoje, como inequívoco que há uma relação directa entre os índices de produtividade, riqueza, participação cívica, e paz social de um país, e os seus níveis de literacia.
É precisamente isso que nos diz o Manifesto IFLA / Unesco sobre Bibliotecas Públicas (1994). Que “a liberdade, a prosperidade e o desenvolvimento da sociedade e dos indivíduos são valores humanos fundamentais. Só serão atingidos quando os cidadãos estiverem na posse da informação que lhes permita exercer os seus direitos democráticos e ter um papel activo na sociedade. A participação construtiva e o desenvolvimento da democracia dependem tanto de uma educação satisfatória, como de um acesso livre e sem limites ao conhecimento, ao pensamento, à cultura e à informação”.
Qual é a nossa ‘missão’, afinal? Colocar com muito cuidado as sementes que, um dia e algures longe da nossa vista, farão nascer os frutos da liberdade, da prosperidade e do desenvolvimento.
É só. Coisa pouca.
Estou em crer que, por esta altura, já vocês pensarão que eu sou uma pobre alma, irremediavelmente perdida na ilusão de que é possível salvar o mundo com livros. A verdade é que ainda ninguém me convenceu do contrário.
Salvar o mundo com livros… claro que é possível.
Pois se toda a cultura ocidental radica nas parábolas de um livro, cujo título é, ainda por cima, A Bíblia que significa, literalmente, O Livro. Pois se Cristóvão Colombo atravessou o oceano certo de que encontraria um continente porque, por obra do destino lhe terá  ido parar às mãos o destroço de papel – quem diria que um dos únicos sobreviventes do naufrágio de uma barca junto à Costa de Labrador seria um diário de bordo –, que era, no fundo, um livro. Pois se o nosso conhecimento científico sobre a natureza e a evolução das espécies nasceu das reflexões de um choninhas que, depois de inúmeras viagens e observações entre tartarugas, iguanas e passarinhos, decidiu – querem adivinhar? – escrever um livro.
São incontáveis os exemplos de livros que marcaram o percurso da humanidade. A forma como nos entendemos a nós próprios, a forma como nos relacionamos uns com os outros, a nossa explicação com o mundo estão intrinsecamente ligados aos livros que lemos e que damos a ler.
A Fábulas de Esopo (séc. VII-VI a.C.), A República de Platão (ca. 380 a.C.), Diário da Primeira Viagem de Vasco da Gama à Índia (1497), Os Direitos do Homem de Thomas Paine (1791), O Manifesto Comunista de Marx e Engels (1848), A Cabana do Pai Tomás de Harriet Beecher Stowe (1852), A Origem das Espécies de Charles Darwin (1859), O Diário de Anne Frank (1947), o Segundo Sexo de Simone de Beauvoir (1949), A Difícil Caminhada para a Liberdade de Nelson Mandela (1965)… são apenas alguns dos muitos livros que marcaram o rumo da humanidade.
Os livros são instrumentos de um poder imenso e imprevisível. Não é por acaso que as primeiras iniciativas “culturais” de qualquer ditadura, seja velada ou assumida, é criar uma lista de obras de regime, e outra, de obras a abater.
Na faculdade tive um professor que nos ensinou uma verdade fundadora e que dizia mais ou menos isto: o mundo tem muito mais de bom do que de mau; o problema é que o ‘Bem’ é naturalmente livre e espontâneo, e o ‘Mal’ é naturalmente assertivo e organizado.
Ora nós, meus amigos, somos bibliotecários. Isso quer dizer que não há nada que não sejamos capazes de organizar, contando que tenhamos uma boa base de dados e um sistema de cotas inteligente e dinâmico. Nada nos impede de catalogar todas as boas ideias que encontramos por aí, livres e espontâneas, e de as usarmos para mudar o mundo. Um livro de cada vez.
Quando digo ‘um livro de cada vez’ não estou só a usar uma frase bonita. Estou a estabelecer um percurso estratégico. Estou a dividir uma tarefa imensa e esmagadora –salvar o mundo com livros – em partes pequeninas e acessíveis.
As maiores viagens começam sempre com um pequeno primeiro passo, dizia Bilbo Baggins, e é verdade. A nossa missão cumpre-se um livro de cada vez. A começar, quase sempre da mesma maneira: ‘Era uma vez…’.
Vou directa ao ‘Era uma vez’ porque um leitor deve começar a construir-se muito cedo. Antes mesmo de aprender a ler. E, claro, o pequeno primeiro passo dessa grande viagem não se faz com Os Versículos Satânicos de Salman Rushdie, mas é importante criar na infância um leitor que, quando adulto, seja capaz de ler o dito livro e que, ao mesmo tempo, seja incapaz de o queimar ou de bater no seu autor.
Começamos com A Maior Flor do Mundo para podermos caminhar, seguros, rumo ao Evangelho Segundo Jesus Cristo. Começamos, com vagar e ternura, certos de que, depois dos autores de livros infantis, venham todos os outros autores, e com eles a pluralidade de perspectivas, o pensamento livre, o conhecimento crítico e verdadeiro, e, finalmente, as ferramentas da liberdade, da prosperidade e do desenvolvimento.
Pelo meio, naturalmente, e além de contos, crónicas, poemas e romances, aprendemos a ler problemas de matemática, manifestos políticos, ensaios de filosofia e, mais importante de tudo, cartas de amor.

o conhecimento

Terceiro Movimento: Sobre o Conhecimento
Entramos, agora, no domínio dos dois elementos que penso serem essenciais para levar a cabo uma boa actividade de mediação da leitura.
O primeiro elemento essencial é o conhecimento.
Devemos saber muito sobre livro que vamos trabalhar. Saber sobre o assunto, o conto, a história, os personagens, o tempo, os lugares; e, claro, essa eterna incógnita que é o autor; sem esquecer o livro em si, porque às vezes o livro tem histórias para contar que não só aquela que traz lá dentro.
Digo saber muito, não digo saber tudo, e não é por acaso. Saber muito sobre algo ou sobre muitas coisas é excelente. Saber tudo (ou pensar que se sabe tudo) é, na verdade, uma tragédia que impede a possibilidade de descoberta a que o poeta Diogo Alcoforado chama de ‘revelação’. A crença no ‘saber tudo’ mata a curiosidade do ‘saber mais’, e arruma no sótão a capacidade de encantamento a que a poetisa Sophia de Mello Breyner chamava de ‘espanto da luz’.
O melhor da humanidade (além das crianças, e sobretudo nas crianças) não é aquilo que se sabe, ou o conjunto do conhecimento reunido. O melhor da humanidade é a sua capacidade de aprender. E é com esta maravilha que nós, mediadores da leitura, somos chamados a trabalhar.
E o que é que aprendemos hoje? Que todos queremos secretamente ser astronautas, e que, quando citamos poetas e filósofos, tudo o que dizemos soa melhor. Mais inspirador. E é isso mesmo que estou a fazer. A tentar criar inspiração para saber mais.
Porque para podermos, com competência, levar os outros a aprender, temos de estar dispostos a aprender também. Temos de ser bons intérpretes para ensinarmos a interpretar.
Quando levamos um livro debaixo do braço para uma biblioteca, uma escola ou um banco de jardim onde vamos contar a sua história, esse livro tem de ser já um velho amigo, de lombada partida, esquinas gastas, páginas anotadas, costuras descosidas. 
Se entendemos um livro como um mundo, entendemo-nos a nós como os seus exploradores. Devemos percorrer as suas avenidas largas e, também, as ruas pouco iluminadas; escalar as montanhas e navegar os oceanos; devemos visitar todos os seus habitantes, saber dos sonhos que alimentam, dos sentimentos que escondem e dos feitos que pretendem levar a cabo; devemos perceber quais as escalas do tempo, as importâncias e as banalidades que por lá se perdem; o fio condutor da história de núcleo, que cresce no centro do livro como uma árvore sagrada, e, também, as narrativas paralelas que voam à sua volta como borboletas.
Devemos tomar notas, construir esquemas e desenhar mapas. Devemos ler muito e entender o mais possível, até àquele ponto de leitura de que falava Agostinho da Silva quando dizia “lerás bem quando leres o que não existe entre uma página e outra”.
Só atingindo nós, naquele livro que estamos a trabalhar, o ponto mais completo da leitura crítica, podemos preparar, em completude, o trabalho de mediação para os outros leitores, independentemente do nível de leitura em que se encontrem (pré-leitura, leitura inicial, leitura competente ou autónoma).
Depois de lido o livro ou contada a história, quanto mais subtil o trabalho de exploração, melhor. Sobretudo, nunca dar as respostas às grandes perguntas. Se o percurso de raciocínio mental for dos leitores, terá um valor incomparavelmente maior, porque a ideia ou conclusão a que se chega resulta de uma reflexão concentrada, passando a fazer parte da sua estrutura de pensamento de forma perene. É a ‘revelação’ que provoca o ‘espanto da luz’.
Se, pelo contrário, fizermos nós um solilóquio sobre o tema da história, ou, pior ainda, sobre ‘o que o autor queria dizer’ – que é uma daquelas coisas de que nunca podemos ter a mínima aproximação a uma resposta segura –,  é quase certo que, seja o que for que digamos, vai ser arrumado naquela parte do cérebro onde se encostam os conselhos para lavar os dentes e os pedidos para arrumar os brinquedos: um poço fundo com um ralo largo, que regularmente descarrega para que fique vazio e se possa brincar com o eco que por lá se faz.
E qual é a forma de evitarmos o poço e o ralo do esquecimento? Existem, com certeza, muitas. Diferentes livros pedem diferentes estratégias, da mesma maneira que diferentes públicos exigem diferentes posturas e abordagens.
Individualmente, a criação de um trabalho artístico que lhes permita pensar sobre o conto ou um pequeno detalhe, tentando compreender o trabalho e a escolha que o antecedeu. Ou convidá-los, em grupo, a encenar a história, obrigando-os a mergulhar mais fundo em todos os seus vectores. Ou conversar, simplesmente, com eles. Só assim, com o livro pousado por perto ou com a ajuda de objectos que ajudem à concretização das ideias.
O melhor modelo será sempre aquele com o qual os leitores e o mediador estiverem mais confortáveis, e aquele que conseguir criar uma dinâmica de ‘reflexão – pergunta – resposta – nova reflexão – nova pergunta – nova resposta…’ num formato em que o mediador conduz invisivelmente, entregando aos leitores o papel de reflectir, de formular a pergunta que a reflexão sugere, de procurar uma resposta que lhe há-de servir durante o tempo estritamente necessário a desenvolver uma nova reflexão e, logo a seguir, a colocar uma outra pergunta, melhor e maior.

o contágio

Quarto Movimento: Sobre o Contágio
Estou a chegar ao fim, e só falta tocar no ponto em que tudo volta ao momento de partida e ao título desta conferência que é, precisamente, o contágio.
Parto da premissa que as acções culturais se operam em dois domínios. O primeiro, oficial e institucional, que inclui a criação e o funcionamento das Redes de Leitura Pública e das Redes de Bibliotecas Escolares, o Plano Nacional de Leitura, as relações de Obras de Leitura Obrigatória e Recomendada, as directrizes da IFLA / Unesco, as políticas e projectos nacionais face à literacia, e por aí fora – isto é a acção por Decreto. O segundo domínio, informal e pessoal, inclui aquele momento de silêncio em que somos nós o veículo de transporte de uma história ou de um livro entre as estantes da biblioteca e a alma de alguém – isto é a acção por contágio.
Já lemos o livro várias vezes, já o estudámos e compreendemos bem. Conhecemos o que nos diz e o que nos esconde, as coisas que se revelam livremente e aquelas a que chegamos depois de as interpretarmos. Levamos preparada a sessão, as brincadeiras e o possível rumo das conversas. Estamos, finalmente, na frente dos nossos leitores e, agora, importa apenas uma coisa: criar entre nós, os ouvintes e o livro, um espírito de conforto, de encantamento, de entrega e de prazer. Uma memória categoricamente boa que se reproduzirá depois espontaneamente por outros espaços e tempos, outros livros e leituras. Os livros e as histórias precisam de ser inconscientemente associados a momentos de prazer. Fazemos isto cuidadosa, planeada e maquiavelicamente. Viciamos os leitores antes que eles tomem consciência do que está a acontecer e depois, será tarde demais.
Vive comigo uma frase da poetisa americana Maya Angelou que diz o seguinte: “as pessoas não se lembrarão de ti por aquilo que lhes dizes, recordar-te-ão apenas pela forma como as fazes sentir”.
É isto, no fundo, o contágio que queremos provocar. Usamos a nossa voz e a nossa postura para criar empatia e a entrega à história. E porque se nós formos genuínos no amor que colocamos na leitura, eles serão capazes de o sentir, usamos o amor que nós próprios temos aos livros e o entusiasmo que eles provocam em nós para contagiar os outros.
E usamos a ‘fé poética’. Aquele conceito mágico que gostava de ter sido eu a inventar, mas um senhor chamado Samuel Taylor Coleridge lembrou-se dele em 1817 e, portanto, muito antes de mim.
Falava ele numa espécie de pacto silencioso entre o livro e o leitor. Um pacto silencioso baseado na concepção de personagens, cenários e acções criando-lhes “uma empatia e uma semelhança com a verdade que permitam chegar a esse espaço de sombra entre a realidade e a imaginação, essa suspensão voluntária e momentânea da descrença que se constitui em fé poética”.
A fé poética resume à essência do encantamento aquele nosso momento de leitura e partilha e, por isso, serve perfeitamente para o definir.
É o reino da fantasia a fazer o caminho para chegar à verdade, à liberdade, à prosperidade e ao desenvolvimento. Esse mundo de encantamento é o nosso mundo real. O mundo em que vivemos um livro de cada vez. O mundo em que colocamos bem arrumada a semente de uma boa ideia, esperando que, um dia e longe da nossa vista, os nossos leitores possam assumir a missão de construir um mundo real melhor.
É só. Coisa Pouca.