segunda-feira, 18 de novembro de 2019

A Bactéria das Histórias


mediação da leitura para a infância como uma actividade de contágio
(reflexão em quatro movimentos com origem no livro)

Raquel Patriarca

a missão

Primeiro Movimento: Sobre a Missão
Venho hoje falar-vos dessa maravilhosa actividade que é a mediação da leitura. Claro que, dito assim, “eu sou mediadora da leitura de livros”, não soa a uma profissão muito desafiante. Mesmo dizendo “adoro aquilo que faço, até tenho jeito e sei o que estou a fazer”, a mediação da leitura é, ainda, uma actividade de… bem, de totós.
Aposto que nenhuma criança sonha ser um mediador da leitura quando crescer. Nessa matéria, os bibliotecários continuam a perder para os bombeiros, os palhaços e, claro, os astronautas. O que esta malta ainda não sabe é que viver dentro dos livros é uma forma quase tão eficaz de andar sempre na lua como ser astronauta.
Entendo a missão de mediador da leitura, e não uso a palavra ‘missão’ ao acaso, como um conjunto integrado de acções, uma espécie de processo que compreende várias etapas e que, no final, tem como objectivo o transporte de uma história ou de um livro entre as estantes da biblioteca e a alma de alguém.
Claro, como toda a arte que se preze, estas coisas dos livros e da leitura são muitas vezes empurradas para o campo do inútil e isso, além de triste, é grave. Porque a acepção de ‘utilidade’ que se gasta hoje em dia traz sempre por arrasto três critérios que viciam o juízo: o da visibilidade – que atribui valor apenas àquilo que é visível, e quanto mais visível melhor –; o do imediatismo – que entende como útil somente aquilo que demonstra utilidade agora –; e o da rentabilidade – que só vê utilidade naquilo que é rentável, de preferência rentável de forma bem visível, e agora.
Estou a perder, pelo menos, três minutos dos vinte que me deram a falar nisto porque me parece importante, e útil, termos presente que a esmagadora maioria do trabalho que fazemos é invisível e inquantificável, os frutos só se colhem passado muito tempo e as, mais das vezes, longe da nossa vista.
É por ser uma ‘missão’ que estes critérios não se aplicam à mediação da leitura. Como qualquer ‘missão’, é um labor em que muitas vezes parece que entregamos mais do que trazemos. Mas só parece. Nós sabemos que não é assim, porque percebemos o momento “sensitivo e consciente” em que tocamos alguém com uma história ou um poema. Porque o conhecimento do passado e a experiência de incontáveis bibliotecários, desde a Biblioteca de Alexandria até à Biblioteca Municipal da Maia, nos diz que assim é. Porque acreditamos na “fé poética”.
O problema é que vivemos num mundo em que os profissionais bem-sucedidos se medem pelos mesmos três critérios do visível, do imediato e do rentável. O mesmo mundo que nos trata com o paternalismo próprio que se guarda aos que não ‘vivem no mundo real’. Mas esse problema é deles e não nosso. Porque nós acreditamos no valor intrínseco daquilo que fazemos.
Na verdade, de totós só temos a aparência. O que conta é o que trazemos de pensamento livre e sábio, e de espírito missionário e guerreiro.
Quando ouço aquela pergunta típica do “para que serve?” Para que serve a leitura? Para que serve a arte? Para que serve a poesia? Para que serve a filosofia? Bem, para fazer perguntas melhores, é a resposta que me ocorre logo. Mas a melhor resposta, a que trago sempre comigo e que nunca me falha, é a do filósofo Núccio Ordine, que diz, simplesmente: A arte, a literatura, a filosofia não servem. As actividades da criação e do pensamento não são servis, sabem apenas libertar. Nós não vivemos no mundo real porque escolhemos não o servir. Escolhemos o caminho, bem mais sinuoso, de ajudar a criar um mundo real melhor.
Seja como for, e sabendo à partida que cada um de nós alimentou o sonho secreto de ser astronauta, e que só está aqui hoje porque esse propósito correu mal, o que me proponho a fazer é, em primeiro lugar, provar-vos que a mediação da leitura é uma actividade muitíssimo pertinente, honrada e gratificante, cheia de beleza e significado. E, em segundo, partilhar convosco os dois elementos que penso serem essenciais para um bom cumprimento desta missão.

a riqueza

Segundo Movimento: Sobre a Riqueza
Lembram-se de vos ter dito que os frutos do trabalho do mediador não se podem quantificar no imediato e dentro dos modelos convencionais? Isto não significa que não haja formas de percebermos como é importante aquilo que fazemos.
Temos, hoje, como inequívoco que há uma relação directa entre os índices de produtividade, riqueza, participação cívica, e paz social de um país, e os seus níveis de literacia.
É precisamente isso que nos diz o Manifesto IFLA / Unesco sobre Bibliotecas Públicas (1994). Que “a liberdade, a prosperidade e o desenvolvimento da sociedade e dos indivíduos são valores humanos fundamentais. Só serão atingidos quando os cidadãos estiverem na posse da informação que lhes permita exercer os seus direitos democráticos e ter um papel activo na sociedade. A participação construtiva e o desenvolvimento da democracia dependem tanto de uma educação satisfatória, como de um acesso livre e sem limites ao conhecimento, ao pensamento, à cultura e à informação”.
Qual é a nossa ‘missão’, afinal? Colocar com muito cuidado as sementes que, um dia e algures longe da nossa vista, farão nascer os frutos da liberdade, da prosperidade e do desenvolvimento.
É só. Coisa pouca.
Estou em crer que, por esta altura, já vocês pensarão que eu sou uma pobre alma, irremediavelmente perdida na ilusão de que é possível salvar o mundo com livros. A verdade é que ainda ninguém me convenceu do contrário.
Salvar o mundo com livros… claro que é possível.
Pois se toda a cultura ocidental radica nas parábolas de um livro, cujo título é, ainda por cima, A Bíblia que significa, literalmente, O Livro. Pois se Cristóvão Colombo atravessou o oceano certo de que encontraria um continente porque, por obra do destino lhe terá  ido parar às mãos o destroço de papel – quem diria que um dos únicos sobreviventes do naufrágio de uma barca junto à Costa de Labrador seria um diário de bordo –, que era, no fundo, um livro. Pois se o nosso conhecimento científico sobre a natureza e a evolução das espécies nasceu das reflexões de um choninhas que, depois de inúmeras viagens e observações entre tartarugas, iguanas e passarinhos, decidiu – querem adivinhar? – escrever um livro.
São incontáveis os exemplos de livros que marcaram o percurso da humanidade. A forma como nos entendemos a nós próprios, a forma como nos relacionamos uns com os outros, a nossa explicação com o mundo estão intrinsecamente ligados aos livros que lemos e que damos a ler.
A Fábulas de Esopo (séc. VII-VI a.C.), A República de Platão (ca. 380 a.C.), Diário da Primeira Viagem de Vasco da Gama à Índia (1497), Os Direitos do Homem de Thomas Paine (1791), O Manifesto Comunista de Marx e Engels (1848), A Cabana do Pai Tomás de Harriet Beecher Stowe (1852), A Origem das Espécies de Charles Darwin (1859), O Diário de Anne Frank (1947), o Segundo Sexo de Simone de Beauvoir (1949), A Difícil Caminhada para a Liberdade de Nelson Mandela (1965)… são apenas alguns dos muitos livros que marcaram o rumo da humanidade.
Os livros são instrumentos de um poder imenso e imprevisível. Não é por acaso que as primeiras iniciativas “culturais” de qualquer ditadura, seja velada ou assumida, é criar uma lista de obras de regime, e outra, de obras a abater.
Na faculdade tive um professor que nos ensinou uma verdade fundadora e que dizia mais ou menos isto: o mundo tem muito mais de bom do que de mau; o problema é que o ‘Bem’ é naturalmente livre e espontâneo, e o ‘Mal’ é naturalmente assertivo e organizado.
Ora nós, meus amigos, somos bibliotecários. Isso quer dizer que não há nada que não sejamos capazes de organizar, contando que tenhamos uma boa base de dados e um sistema de cotas inteligente e dinâmico. Nada nos impede de catalogar todas as boas ideias que encontramos por aí, livres e espontâneas, e de as usarmos para mudar o mundo. Um livro de cada vez.
Quando digo ‘um livro de cada vez’ não estou só a usar uma frase bonita. Estou a estabelecer um percurso estratégico. Estou a dividir uma tarefa imensa e esmagadora –salvar o mundo com livros – em partes pequeninas e acessíveis.
As maiores viagens começam sempre com um pequeno primeiro passo, dizia Bilbo Baggins, e é verdade. A nossa missão cumpre-se um livro de cada vez. A começar, quase sempre da mesma maneira: ‘Era uma vez…’.
Vou directa ao ‘Era uma vez’ porque um leitor deve começar a construir-se muito cedo. Antes mesmo de aprender a ler. E, claro, o pequeno primeiro passo dessa grande viagem não se faz com Os Versículos Satânicos de Salman Rushdie, mas é importante criar na infância um leitor que, quando adulto, seja capaz de ler o dito livro e que, ao mesmo tempo, seja incapaz de o queimar ou de bater no seu autor.
Começamos com A Maior Flor do Mundo para podermos caminhar, seguros, rumo ao Evangelho Segundo Jesus Cristo. Começamos, com vagar e ternura, certos de que, depois dos autores de livros infantis, venham todos os outros autores, e com eles a pluralidade de perspectivas, o pensamento livre, o conhecimento crítico e verdadeiro, e, finalmente, as ferramentas da liberdade, da prosperidade e do desenvolvimento.
Pelo meio, naturalmente, e além de contos, crónicas, poemas e romances, aprendemos a ler problemas de matemática, manifestos políticos, ensaios de filosofia e, mais importante de tudo, cartas de amor.

o conhecimento

Terceiro Movimento: Sobre o Conhecimento
Entramos, agora, no domínio dos dois elementos que penso serem essenciais para levar a cabo uma boa actividade de mediação da leitura.
O primeiro elemento essencial é o conhecimento.
Devemos saber muito sobre livro que vamos trabalhar. Saber sobre o assunto, o conto, a história, os personagens, o tempo, os lugares; e, claro, essa eterna incógnita que é o autor; sem esquecer o livro em si, porque às vezes o livro tem histórias para contar que não só aquela que traz lá dentro.
Digo saber muito, não digo saber tudo, e não é por acaso. Saber muito sobre algo ou sobre muitas coisas é excelente. Saber tudo (ou pensar que se sabe tudo) é, na verdade, uma tragédia que impede a possibilidade de descoberta a que o poeta Diogo Alcoforado chama de ‘revelação’. A crença no ‘saber tudo’ mata a curiosidade do ‘saber mais’, e arruma no sótão a capacidade de encantamento a que a poetisa Sophia de Mello Breyner chamava de ‘espanto da luz’.
O melhor da humanidade (além das crianças, e sobretudo nas crianças) não é aquilo que se sabe, ou o conjunto do conhecimento reunido. O melhor da humanidade é a sua capacidade de aprender. E é com esta maravilha que nós, mediadores da leitura, somos chamados a trabalhar.
E o que é que aprendemos hoje? Que todos queremos secretamente ser astronautas, e que, quando citamos poetas e filósofos, tudo o que dizemos soa melhor. Mais inspirador. E é isso mesmo que estou a fazer. A tentar criar inspiração para saber mais.
Porque para podermos, com competência, levar os outros a aprender, temos de estar dispostos a aprender também. Temos de ser bons intérpretes para ensinarmos a interpretar.
Quando levamos um livro debaixo do braço para uma biblioteca, uma escola ou um banco de jardim onde vamos contar a sua história, esse livro tem de ser já um velho amigo, de lombada partida, esquinas gastas, páginas anotadas, costuras descosidas. 
Se entendemos um livro como um mundo, entendemo-nos a nós como os seus exploradores. Devemos percorrer as suas avenidas largas e, também, as ruas pouco iluminadas; escalar as montanhas e navegar os oceanos; devemos visitar todos os seus habitantes, saber dos sonhos que alimentam, dos sentimentos que escondem e dos feitos que pretendem levar a cabo; devemos perceber quais as escalas do tempo, as importâncias e as banalidades que por lá se perdem; o fio condutor da história de núcleo, que cresce no centro do livro como uma árvore sagrada, e, também, as narrativas paralelas que voam à sua volta como borboletas.
Devemos tomar notas, construir esquemas e desenhar mapas. Devemos ler muito e entender o mais possível, até àquele ponto de leitura de que falava Agostinho da Silva quando dizia “lerás bem quando leres o que não existe entre uma página e outra”.
Só atingindo nós, naquele livro que estamos a trabalhar, o ponto mais completo da leitura crítica, podemos preparar, em completude, o trabalho de mediação para os outros leitores, independentemente do nível de leitura em que se encontrem (pré-leitura, leitura inicial, leitura competente ou autónoma).
Depois de lido o livro ou contada a história, quanto mais subtil o trabalho de exploração, melhor. Sobretudo, nunca dar as respostas às grandes perguntas. Se o percurso de raciocínio mental for dos leitores, terá um valor incomparavelmente maior, porque a ideia ou conclusão a que se chega resulta de uma reflexão concentrada, passando a fazer parte da sua estrutura de pensamento de forma perene. É a ‘revelação’ que provoca o ‘espanto da luz’.
Se, pelo contrário, fizermos nós um solilóquio sobre o tema da história, ou, pior ainda, sobre ‘o que o autor queria dizer’ – que é uma daquelas coisas de que nunca podemos ter a mínima aproximação a uma resposta segura –,  é quase certo que, seja o que for que digamos, vai ser arrumado naquela parte do cérebro onde se encostam os conselhos para lavar os dentes e os pedidos para arrumar os brinquedos: um poço fundo com um ralo largo, que regularmente descarrega para que fique vazio e se possa brincar com o eco que por lá se faz.
E qual é a forma de evitarmos o poço e o ralo do esquecimento? Existem, com certeza, muitas. Diferentes livros pedem diferentes estratégias, da mesma maneira que diferentes públicos exigem diferentes posturas e abordagens.
Individualmente, a criação de um trabalho artístico que lhes permita pensar sobre o conto ou um pequeno detalhe, tentando compreender o trabalho e a escolha que o antecedeu. Ou convidá-los, em grupo, a encenar a história, obrigando-os a mergulhar mais fundo em todos os seus vectores. Ou conversar, simplesmente, com eles. Só assim, com o livro pousado por perto ou com a ajuda de objectos que ajudem à concretização das ideias.
O melhor modelo será sempre aquele com o qual os leitores e o mediador estiverem mais confortáveis, e aquele que conseguir criar uma dinâmica de ‘reflexão – pergunta – resposta – nova reflexão – nova pergunta – nova resposta…’ num formato em que o mediador conduz invisivelmente, entregando aos leitores o papel de reflectir, de formular a pergunta que a reflexão sugere, de procurar uma resposta que lhe há-de servir durante o tempo estritamente necessário a desenvolver uma nova reflexão e, logo a seguir, a colocar uma outra pergunta, melhor e maior.

o contágio

Quarto Movimento: Sobre o Contágio
Estou a chegar ao fim, e só falta tocar no ponto em que tudo volta ao momento de partida e ao título desta conferência que é, precisamente, o contágio.
Parto da premissa que as acções culturais se operam em dois domínios. O primeiro, oficial e institucional, que inclui a criação e o funcionamento das Redes de Leitura Pública e das Redes de Bibliotecas Escolares, o Plano Nacional de Leitura, as relações de Obras de Leitura Obrigatória e Recomendada, as directrizes da IFLA / Unesco, as políticas e projectos nacionais face à literacia, e por aí fora – isto é a acção por Decreto. O segundo domínio, informal e pessoal, inclui aquele momento de silêncio em que somos nós o veículo de transporte de uma história ou de um livro entre as estantes da biblioteca e a alma de alguém – isto é a acção por contágio.
Já lemos o livro várias vezes, já o estudámos e compreendemos bem. Conhecemos o que nos diz e o que nos esconde, as coisas que se revelam livremente e aquelas a que chegamos depois de as interpretarmos. Levamos preparada a sessão, as brincadeiras e o possível rumo das conversas. Estamos, finalmente, na frente dos nossos leitores e, agora, importa apenas uma coisa: criar entre nós, os ouvintes e o livro, um espírito de conforto, de encantamento, de entrega e de prazer. Uma memória categoricamente boa que se reproduzirá depois espontaneamente por outros espaços e tempos, outros livros e leituras. Os livros e as histórias precisam de ser inconscientemente associados a momentos de prazer. Fazemos isto cuidadosa, planeada e maquiavelicamente. Viciamos os leitores antes que eles tomem consciência do que está a acontecer e depois, será tarde demais.
Vive comigo uma frase da poetisa americana Maya Angelou que diz o seguinte: “as pessoas não se lembrarão de ti por aquilo que lhes dizes, recordar-te-ão apenas pela forma como as fazes sentir”.
É isto, no fundo, o contágio que queremos provocar. Usamos a nossa voz e a nossa postura para criar empatia e a entrega à história. E porque se nós formos genuínos no amor que colocamos na leitura, eles serão capazes de o sentir, usamos o amor que nós próprios temos aos livros e o entusiasmo que eles provocam em nós para contagiar os outros.
E usamos a ‘fé poética’. Aquele conceito mágico que gostava de ter sido eu a inventar, mas um senhor chamado Samuel Taylor Coleridge lembrou-se dele em 1817 e, portanto, muito antes de mim.
Falava ele numa espécie de pacto silencioso entre o livro e o leitor. Um pacto silencioso baseado na concepção de personagens, cenários e acções criando-lhes “uma empatia e uma semelhança com a verdade que permitam chegar a esse espaço de sombra entre a realidade e a imaginação, essa suspensão voluntária e momentânea da descrença que se constitui em fé poética”.
A fé poética resume à essência do encantamento aquele nosso momento de leitura e partilha e, por isso, serve perfeitamente para o definir.
É o reino da fantasia a fazer o caminho para chegar à verdade, à liberdade, à prosperidade e ao desenvolvimento. Esse mundo de encantamento é o nosso mundo real. O mundo em que vivemos um livro de cada vez. O mundo em que colocamos bem arrumada a semente de uma boa ideia, esperando que, um dia e longe da nossa vista, os nossos leitores possam assumir a missão de construir um mundo real melhor.
É só. Coisa Pouca.

quinta-feira, 21 de março de 2019

Este ano nas Correntes d'Escritas















Mais Poetas, Mais Histórias e Mais Perguntas Como Uma Talvez Solução


Reunimo-nos por estes dias ao redor dos poemas de Sophia e, nesta mesa em particular, desafiados pelo verso: “este é o tempo em que os homens renunciam”. Tem vivido comigo este verso e revejo-me nele porque diz a verdade.
Este é o tempo em que os homens renunciam” parece-me, em partes iguais, um testemunho desencantado e um juízo acusador. Desencantado por haver, em todas as formas de renúncia, uma semente de puro desencanto. E acusador por me sentir culpada de praticar um escondimento muito gémeo da renúncia.
Sou culpada, e aqui me confesso, de renunciar à realidade. Comecei durante os anos de curso. Fui estudar História porque queria compreender os caminhos da humanidade. Perceber o que existe de comum, eliminar os equívocos que separam os povos mais do que as fronteiras. Acreditava no aprender com o passado e no projectar um futuro limpo de vergonhas. Mas, claro, a História estuda a realidade e não a utopia e isso desencantou-me muito.
Durante o primeiro ano, li a Poética de Aristóteles e, chegada à reflexão sobre “o ofício do historiador, de contar o que aconteceu, e o do poeta, de representar o que poderia acontecer,” comecei a desconfiar de que estava no curso errado. Não desisti, é verdade, mas aprendi a desertar um pouco, e fazia-o com os livros.
As leituras obrigatórias do curso – tudo bíblias absolutas assinadas por autores canónicos da historiografia académica, as leituras que garantiam brilhantismo nos exames – tinham quase sempre o efeito de me deprimir. Nas raras alturas em que não era assim, o sentimento de tédio chegava tão fundo que tinha verdadeira saudade dos tempos em que me deitava no quintal, com os olhos à altura da erva, e ficava a vê-la crescer.
Fui fugindo como pude nos corredores da Faculdade de Letras, evitava cruzar-me com os historiadores, os arqueólogos e os sociólogos que era obrigatório ler. Esquivava-me aos cientistas da política, da geografia humana e da estatística, essas almas atormentadas de números e percentagens. Assobiava para o lado aos vestígios e às fontes documentais, e nunca lia nada na forma diminuta e cruel das notas de rodapé.
Hoje, aqui, fico contente de evocar um outro verso de Sophia: o poema me levará no tempo”. Foi assim que acabei o curso: sempre que podia, trocava tudo por poemas.
No princípio era o Verbo, e a seguir veio Gilgamesh. Depois, estudei o Egipto de Christian Jacq e o mundo clássico nas epopeias de Homero e nas memórias que o imperador Adriano nunca escreveu. Aprendi a época medieval em Dante, Walter Scott, Umberto Eco e Ingmar Bergman. O Renascimento não renasceria sem os moinhos gigantes do Quixote de Cervantes, ou as dúvidas existenciais do Hamlet de Shakespeare. A França pertenceu a Victor Hugo que a entregou, mais tarde, a Balzac. Como a Rússia veio a ser de Tolstoi, Dostoiévski e Pasternak. Descobri a América nas mulheres perseguidas de Hawthorne e nas memórias de Calamity Jane, em Mark Twain, Salinger e, mais tarde, em Walt Wiltman e Emily Dickinson. Visitei a Inglaterra de Jane Austen e a de Charles Dickens. Li a ditadura espanhola nos poemas de Garcia Lorca, nos contos de Manuel Rivas, no Guernica de Picasso. O Desconhecido nesta morada de Kressman Taylor e O Rapaz do Pijama às Riscas de John Boyne confessaram-me os pecados da Alemanha nazi na Segunda Guerra. Não existe América do Sul sem Neruda e García Marques, nem Europa de Leste sem Kundera e Le Carré. Não existe Índia sem Tagore e Moravia, não existe Brasil sem Guimarães Rosa.
Bem sei que “a minha pátria é onde o vento passa” mas falta-me dizer que é nas cantigas de amigo que mora o nosso medievalismo. Que parte da alma portuguesa está no vernáculo desbragado a que eruditamente chamamos de Vicentino. Que não se encontra sentido nos Descobrimentos sem o Adamastor de Camões ou as crónicas de Fernão Mendes Pinto que inventou, pelo menos, metade do que escreveu. Já não existe nenhum arco junto ao oratório de Santa Ana, vi-o nas narrativas de Garrett, mestre das palavras e dos punhos de renda. São tantos os poetas, mas falarei apenas de mais dois. Porque são os versos de José Afonso que cantam os nossos anos de sombra, e porque são os versos de Sophia que fazem nascer “o dia inicial inteiro e limpo / onde emergimos da noite e do silêncio”.

Estes novos vícios acumulavam com outros, mais antigos e arreigados, de voltar aos livros da infância, como lugares de conforto. Sabia-me bem, sabe-me bem ainda, perder-me nas florestas assustadoras dos irmãos Grimm, visitar Lilipute, a Terra Média e o Asteróide B-612. Encher o jardim de gigões e anantes à procura de lagartinhas muito comilonas. Abrigar no sótão um dragão tímido, ter monstros escondidos no roupeiro, um tubarão na banheira e um tigre que vem só para tomar chá.
Talvez eu tenha feito o curso muito ao contrário o que, em certa medida, é adequado porque em nenhuma outra dimensão humana correm as coisas tanto ao contrário como na História. Ao contrário ou não, creio hoje que existe mais verdade nas palavras de um poeta do que em todos os livros de História. É que a História, proprietária de um enorme potencial de aplicabilidade prática, é torcida e instrumentalizada por um sem número de flancos, a que se dá o nome de perspectivas. Já a Poesia, por ter fama de ser inútil, é livre de se dedicar só à verdade.
E para que serve, afinal a poesia. Trago sempre comigo a resposta de um filósofo – Nuccio Ordine – que diz, simplesmente: A poesia não serve. Porque a poesia não é servil. A poesia só sabe libertar.
Pudesse a História ser parente mais chegada da poesia, e havia de nos servir, pelo menos, para enfrentarmos juntos o terror da morte / para ver a verdade e perder o medo”. E isto, é outro verso de Sophia. A mesma Sophia que trouxe um Cavaleiro da Dinamarca, que esculpiu um Rapaz de Bronze, que fez emergir a Menina do Mar.
Estou em crer que a poesia, a ficção, as histórias carregam a esperança da humanidade face à renúncia, mas consumidas pausada e pensadamente. E quanto mais cedo melhor. Porque é mais fácil encontrar um Evangelho Segundo Jesus Cristo numa biblioteca onde, em tempos, se plantou A Maior Flor do Mundo.
As formas de renúncia não são todas iguais. A modalidade de visitar o Valete de Copas e o Coelho Branco logo a seguir ao noticiário é uma pequeneza se comparada com outras. Se renunciar à realidade é grave. Renunciar ao sonho é uma catástrofe.
A pior de todas as renúncias, é a que vive nos neurónios das crianças.
Há poucas experiências tão desconcertantes como, na frente de crianças ou jovens, perguntar sobre sonhos, desejos e viagens, e ter de retorno um olhar distante, um encolher de ombros que dói como um murro no estômago. Fica-nos a alma ao dependuro, sem respostas e, pior ainda, sem perguntas. É a desistência mais feia porque é voluntária.
A questão não é estarem as crianças tolhidas de pensar ou dizer o que pensam. O problema é não desejarem nada. Não sonharem nada.
E a gravidade do problema um é que rapidamente leva ao problema dois ponto zero. Quando se têm as crianças em renúncia, alheias ao “horizonte vazio em que nada resta”, é certo que o vazio se preencha com toda a sorte de derivados da estupidez. Se o problema um é a indiferença, o problema dois é a incapacidade de distinguir o autêntico do falso, o essencial do acessório, o conteúdo da fachada, o que é bom e universal daquilo que é só o ponto absoluto de zero.
Ando por aí a defender mais poetas, mais histórias e mais perguntas como uma talvez solução. Estou a ser simplista, claro, mas a arma que resta contra a renúncia é o espírito crítico. Pensar muito e livremente, interpretar tudo à luz da liberdade pensante, tirar conclusões autonomamente, construir caminhos próprios. Para isso é preciso adestrar o cérebro como fazemos com as pernas quando aprendemos a andar.
Estaremos sempre expostos à ignorância e à malícia como à varicela. Só evitaremos o contágio se desenvolvermos anticorpos na nossa mente.
Faz de conta que vos vou contar uma história. Um pequeno exemplo para ilustrar os disparates que estou a dizer.
Todos sabemos que o conto sobre uma marioneta animada a quem Carlo Collodi chamou de Pinóquio tem por objectivo ensinar as crianças a nunca dizerem uma mentira, verdade? Sim, mas isso é só parte da verdade. E meia verdade é já uma mentira inteira. Conta-nos a dita história que, Pinóquio é um menino de madeira que quer ser um menino de verdade mas, por ironia, é demasiado imaginativo. Uma outra ironia esconde-se no facto de o pequeno Pinóquio ser o personagem mais honesto da história, por trazer incorporado e à vista de todos um infalível polígrafo. Por outro lado, os restantes personagens, pessoas verdadeiras todas elas, podem mentir quanto lhes apeteça sem que ninguém lhes aponte o dedo ao nariz.
A primeira camada do conto tem a moral simples de ensinar a não mentir, o que é sempre mais ou menos bonito. A segunda camada da história convida a reflectir nas muitas circunstâncias em que a falsidade se esconde, mascarando-se de outra coisa. E é esta, e não aquela, a ferramenta verdadeiramente útil para uma alma pensante.
Ficar só na primeira conclusão, é perder uma oportunidade de usar a inteligência e é perder a essência da história. É, no fundo, alimentar o ciclo de preguiça mental e de renúncia que vem atrás.
E agora, uma moral para a minha história. Talvez não haja nenhuma.
Ou talvez começando cedo e aos poucos, como no caminho de poetas e contadores de histórias que me trouxe, ao contrário, a um destino direitamente desenhado para mim.
Talvez evitando a obsessão do imediatamente útil e do materialmente compensador. Talvez percebendo que representar a realidade com cinismo é uma forma de falsidade pior do que a mentira.
Talvez mostrando às crianças os vários sentidos possíveis de uma história, em vez de as insinuar à renúncia da sua voz e a ter medo de errar.
Talvez levando para casa um poeta que nos deixe versos soltos escritos na alma. Talvez inspirando uma criança a dizer como Sophia, eu “sou o único homem a bordo do meu barco”.
Talvez, depois de Collodi venha Lewis Carroll e Sophia de Mello Breyner, e depois Homero e Shakespeare e todos os outros, e com eles o conhecimento crítico e verdadeiro sobre a História da humanidade. Se não da humanidade como conjunto de pessoas humanas, pelo menos da humanidade como sentimento que nos une a todos, para lá do tempo e do espaço que espartilham a História.
Talvez havendo mais dias como este, ao redor da verdade dos versos, possa haver no mundo mais crianças prontas a conhecer as “cidades acesas na distância” e menos homens que renunciam, sem perguntas, ao seu direito a sonhar.




dos sublinhados:
“este é o tempo em que os homens renunciam” de Este é o tempo; “o poema me levará no tempo” de O poema; “a minha pátria é onde o vento passa” de Pirata; “o dia inicial inteiro e limpo / onde emergimos da noite e do silêncio” de 25 de Abril; “para enfrentarmos juntos o terror da morte / para ver a verdade e perder o medo” de Para atravessar contigo o deserto do mundo; “horizonte vazio em que nada resta” de Horizonte vazio; “sou o único homem a bordo do meu barco” de Pirata; “cidades acesas na distância” de Há cidades acesas na distância, todos poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen.