quinta-feira, 28 de outubro de 2010

a três tempos

1.
o tempo não existe. é um engano. uma mentira. uma necessidade
compulsiva de controlar o incontrolável. uma convenção
que se pretende universal mas não absoluta.
a sua pseudo existência acompanha a intemporalidade do espírito
humano.

o tempo, serve para eu saber quem sou, de onde venho e o que quero
ser no futuro próximo e longínquo. serve para encadear

tudo o que existe no plano físico, de uma forma metafisicamente
difícil de compreender.

o Alberto disse-me uma ocasião que o tempo -
como coisa quantificável e científica - serve
para que os acontecimentos não aconteçam todos de uma só vez.
eu nunca duvidei do que me diz o Alberto mas às vezes,
de longe a longe, quer-me parecer que o tempo -
como conceito abstracto e iniludível da vida -
serve para atrapalhar cada um dos pequenos segmentos
quânticos em que é possível espartilhar a existência.
a minha ou qualquer outra.
epidemicamente.

2.
e eu, pequena criatura, menos que as areias do pó que pousa
ao de leve nas nuvens do pensamento de Cronos,
danço desassossegado com um enigma que ele inventou.
sei-me incapaz de lhe fugir,
ignorar as regras ou pisar as fronteiras;
e sei-me sempre sem ele,
sem equilíbrio e sem controlo,
a correr atrás da minha própria rotina –
atrasada e descompassadamente -
desesperado de a apanhar, tão alheia de mim que agora é.

tamanha auto consciência seria de louvar, não fora a enormidade
de tudo o que não sei e a inutilidade do pouco que vou intuindo.
pergunto-me se com Alberto terá sido assim.
claro, no campo da problematização teórica e científica, ninguém
foi mais longe. estou até convencido que se houve alguém perto
de dar um estalo na testa altiva e emproada de Cronos,
esse alguém foi o Alberto. digo no correr normal dos dias.
no dobrar das peúgas e no ser-se cidadão
e no tentar não envergonhar os pais. pergunto-me se
ao Alberto também faltava tempo.
quero dizer: se lhe faltava, como a mim.

o facto é que não tenho tempo.
tenho-o
porque o sinto em mim a embolorecer os ossos
e a alegria. a dobrar rugas nas expectativas.
a esboroar espaços vazios onde vem morar o vento
dos outonos que vão passando.
tenho-o
porque o reconheço quando estamos só os dois. sem mais ninguém.
então, descubro que me falta iniciativa. que entretanto
me desabitou toda a família da vontade como um inquilino descontente
que se mudasse para onde o sol seja mais quente e as pessoas
sorriam mais pela manhã. e deixo-o fugir outra e outra vez,
existo, simplesmente, e ele fica, durante um bocado a fazer-me
festas na cabeça e a encanecer-me os cabelos.
figurativamente.

depois desaparece subsumido entre o aprumo das
lombadas e a linearidade dos festos e dos mil e muitos
gestos que se gastam todos os dias.
em coisa nenhuma.
desgovernadamente.

3.
estou velho, Alberto. o que não compreendi ou aprendi
ainda, já não é meu para aprender ou atingir. se outrora
me foi cara a ideia de cada acontecimento
acontecer na sua vez, estou agora tão desimportado
que já nem perco tempo a pensar em tal coisa.

estou cansado, Alberto. talvez encontre ainda
vontade para não querer escoar
o tempo que me resta a reflectir contigo – que já não existes
cronologicamente - sobre as incongruências dele – que afinal
é eterno. tu baralhas-me. e o que me baralha é infalível
que acabe por me irritar, e eu estou velho demais para me irritar
com a competência e presença de espírito que me merece a memória
que tenho de mim próprio.

suponho que também a memória - como o tempo -
me vá mentindo aos poucos todos os dias.
que aquilo que me lembro de ter vivido, tão real
como eu estar aqui, tenha afinal uma existência
tão irreal como aquela que um dia atribuí
ao próprio tempo.

talvez nada do que me lembro tenha de facto acontecido. talvez
tudo não passe de amontoados de imagens descoloridas
que eu próprio inventei, juntando - sem atenção às quantidades –
os meus incumprimentos e o passar tempo.

tanto faz, Alberto. porque o que o tempo me deixou
é tudo o que me resta.
agora, uma realidade relativa.
absolutamente.
raquel patriarca
vinteeoito.outubro.doismiledez
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nós aqui

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entre nós, tanto tempo.
vidas oferecidas num verso
de papel velho e um abraço.
entre nós, tanto tempo. nenhum espaço.
raquel patriarca
vinteeoito.outubro.doismiledez
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segunda-feira, 25 de outubro de 2010

notícias minhas em palavras alheias

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Tenho uma grande constipação, 
e toda a gente sabe como as grandes constipações
alteram todo o sistema do universo,
zangam-nos contra a vida,
e fazem espirrar até à metafísica.
Tenho o dia perdido cheio de me assoar.
Dói-me a cabeça indistintamente.
Triste condição para um poeta menor!
Hoje sou verdadeiramente um poeta menor.
O que fui outrora foi um desejo; partiu-se.
Adeus para sempre, rainha das fadas!
As tuas asas eram de sol, e eu cá vou andando.
Não estarei bem se não me deitar na cama.
Nunca estive bem senão deitando-me no universo.
Excusez un peu... Que grande constipação física!
Preciso de verdade e da aspirina.

Álvaro de Campos
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quinta-feira, 21 de outubro de 2010

photo grafia XLIII


"dentro e fora, a luz"
casco histórico - córdova - espanha
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fotografia: raquel patriarca
vinteedois.agosto.doismiledez
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sexta-feira, 15 de outubro de 2010

a morte do homem

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o corpo foi encontrado pouco depois do nascer do sol. mal coberto pela folhagem, costas no chão, braços estendidos ao longo do tronco, mãos voltadas para cima em abandono. não havia no rosto sinais de sofrimento e os olhos estavam fechados. o exame preliminar apontava para um suicídio por desistência mas alguém deu conta que faltava um sapato. o mesmo alguém que, passados minutos, fez rodar o cadáver e encontrou, junto à nuca da vítima, o microscópico orifício por onde lhe haviam retirado a humanidade.
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r.
quinze.outubro.doismiledez
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photo grafia XLII

"mensagens importantes"
literatura mural - a chegar à cidade universitária - coimbra
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raquel patriarca
onze.setembro.doismiledez

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

isabel sousa

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este ano está farto de fazer desaparecer gente que nos faz falta a todos. a Isabel Sousa deixa saudades. deixa um mundo de caminhos desbravados nas bibliotecas, nos livros, na leitura. deixa inspiração que é a coisa que mais falta nos faz.
eu, quando - e se - crescer, gostava de ser como ela.
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r.
catorze.outubro.doismiledez
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há perguntas tão incrivelmente bonitas que não se devem estragar com respostas esforçadas e parolas

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ó
mamã,
como é que o eco
sabe o que nós vamos dizer
?

pedro ribeiro
catorze.outubro.doismiledez
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