quarta-feira, 20 de maio de 2009

dicionário do diabo

nunca pensei que fosse possível ler um dicionário, literalmente, de a a z... não só não pensei que fosse possível como pensei convictamente que fosse impossível. e claro, estava enganada nas duas opiniões… que são a mesma opinião postulada de duas formas diferentes o que vem a dar uma opinião apenas.
... pois.
opiniões à parte, peguei no dicionário de uma estante da livraria por mera curiosidade, afeiçoei-me ao objecto que me cabia bem nas mãos e me fez sorrir em algumas poucas passagens que li. tive pena de o largar outra vez e acabei por trazê-lo comigo para casa. pousei-o na secretária e uma noite levei-o para cima, para a mesa de cabeceira. nessa noite não dormi e a culpa foi dele… quando cheguei ao m já eram quatro da manhã e tive de o pousar e pegar noutro livro. no dia seguinte saiu comigo de casa e andou a passear na mochila entre uma ou outra espreitadela: n, o, p… o p foi uma das minhas letras favoritas. enquanto fiz o jantar percorri as consoantes até ao u. antes da hora de deitar já tinha consumido o triunvirato v, x e z, o posfácio, as notas finais e restantes apontamentos em letras pequeninas.
é um dos livros mais surpreendentes e mentalmente estimulantes que já li. mergulha sem rede no mais puro da natureza humana. é irónico e verdadeiro, pertinente e universal, profundo e bem disposto.
repousa agora na estante dos notáveis, a lombada ao alcance dos olhos e da mão. deixo alguns excertos em jeito de cócegas cuja comichão se espera insustentável. a solução é ler – como eu fiz – o dicionário de a a z.
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ar, n. - substância nutritiva fornecida para engorda dos pobres por uma providência caridosa.
beladona, n. - em italiano, mulher bela; em português, um veneno mortal. um exemplo assinalável da semelhança entre estas duas línguas.
cínico, n. - um malandro cuja visão deficiente lhe apresenta as coisas como elas são, não como deviam ser.
dicionário, n. - dispositivo literário malévolo para impedir o crescimento da língua e para a tornar rígida e pouco flexível. este dicionário, no entanto, é uma obra muito útil.
economia, n. - adquirir o barril de uísque que não é necessário pelo preço da vaca que não se tem dinheiro para comprar.
, n. - crença, não baseada em provas, no que é contado por alguém que fala sem conhecimento de coisas sem paralelo.
gentileza, n. - breve prefácio a dez volumes de exigências.
história, n. - um relato geralmente falso de acontecimentos geralmente fúteis, contados por governantes geralmente velhacos e soldados geralmente tolos.
idiota, n. - membro de uma tribo grande e poderosa, que tem exercido uma influência dominante e controladora sobre os assuntos humanos. a actividade do idiota não se encontra confinada a uma área especial do pensamento ou da acção, mas atravessa e regula o todo.
justiça, n. - uma mercadoria que o estado vende aos cidadãos, em condições mais ou menos adulteradas, como retribuição pela sua obediência, pelos seus impostos e serviços pessoais.
liberdade, n. - um dos bens mais valiosos da imaginação.
mulher, n. - animal que vive habitualmente nas proximidades do homem e que é pouco susceptível à domesticação. das espécies predadoras esta é a mais amplamente disseminada, infestando todas as partes habitáveis do mundo, desde as graciosas montanhas da gronelândia à virtuosa costa da índia. a mulher é ágil e elegante nos seus movimentos, omnívora, e pode ser ensinada a não falar.
nepotismo, n. - nomear a própria avó para um cargo público, pelo bem do partido.
observatório, n. - sítio onde os astrónomos fazem conjecturas que invalidam os palpites dos seus antecessores.
poema, n. - amor – desejo – calor – beijo. é este tipo de coisas assim, este lixo miserável que nos faz gritar “basta! já chega!”, e usar frequentemente um grande e sonoro ____-__.
querida, n. - a chata do sexo oposto, numa fase inicial do seu desenvolvimento.
reflexão, n. - uma acção da mente, através da qual obtemos uma visão mais lúcida da nossa relação com as coisas passadas, ficando assim mais preparados para evitar os perigos que não voltaremos a encontrar.
santo, n. - um pecador morto, revisto e editado.
táxi, n. - veículo assustador no qual um pirata nos conduz aos solavancos por caminhos dúbios até ao sítio errado, para então nos assaltar.
ultimato, n. - uma última exigência antes de se recorrer a concessões.
vida, n. - uma espécie de salmoura espiritual que conserva o corpo, protegendo-o da decadência. vivemos constantemente com medo de a perder; e, no entanto, ninguém sente a sua falta quando a perde.
x, - sendo uma letra pouco necessária no nosso alfabeto, possui uma invencibilidade acrescida relativamente aos ataques reformadores da ortografia e, tal como eles, viverá tanto quanto a própria linguagem.
zelo, n. - um desarranjo de origem nervosa que atinge os novos e inexperientes. um entusiasmo que antecede um espalhanço.
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[dicionário do diabo / ambrose guinnett bierce, 1842-1914 ; selecção e tradução de rui lopes ; prefácio de pedro mexia ; ilustrações de ralph steadman. – lisboa : tinda-da-china, 2006. – 175, [1] p. : il. ; 19 cm. – isbn 972-8955-02-2.]
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raquel patriarca
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