sexta-feira, 1 de novembro de 2013

poema para uma tília



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Quero escrever um poema para

uma tília que conheci quando era

pequena.

Já se não podem escrever poemas às magnólias que são

magníficos relâmpagos

ou aos rododendros que são –

todos –

mais-que-perfeitos

(e eu, pequena, nem sabia o que era uma magnólia

nem conseguia dizer ro-do-den-dro).

 .

Eu brincava com a alegria de quem

tem pouco juízo e sabe, menos ainda,

das coisas da vida.

Às vezes descalça, mas sempre

de chapéu e sorriso, à beira dela, assim pequena e roliça

(eu, porque ela era imensa imensa, de segurar o céu nas pontas dos ramos).

Ela, com as flores muito brancas

em redonda cabeleira de mulher velhinha e sábia,

gastava-se de tempo comigo e

brincávamos no silêncio das tardes sem fim,

num quintal estreito com alfazemas no jardim.

 .

Ela, muito sossegadamente doce e cheirosa,

deixava-me subir e ficar sentada,

as pernas penduradas a abanar,

mais alta que as casas e que torre da igreja,

no lugar dos sonhos e dos contos de encantar.

E eu fazia de conta que

chegava a um outro país,

de gigantes e anões e animais pensantes e faladores,

com tesouros floridos de magia e segredo,

onde enchia saquinhos de pano com

o cheiro das folhas e a brancura das flores,

que trazia, como curas de milagre, que

se guardassem em frascos com mola na tampa

e etiquetas de papel e letras desenhadas.

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Ela prometia bem-fazer aos resfriados,

assim fervente  em malgas grandes de louça pintada,

enquanto aquecia os meus dedos gorduchos

e as mãos pequeninas e muito brancas

da minha avó, nas manhãs dos invernos frios,

que na serra da minha infância, os invernos

eram sempre mais brancos e mais frios.

 .

Éramos muito amigas, a tília, a minha avó e eu,

mansamente abrigadas no quintal estreito

onde crescia a tília

onde eu era pequena e roliça e de onde via o mundo,

assim, sentadamente feliz e desimportada de tudo.

 .

Quero escrever um poema para

uma tília que me cresce na memória,

imensa imensa

na largueza do abraço e na altura do horizonte,

o poiso magnífico e mais-que-perfeito

das criaturas do céu e das cores da serra,

com cheiro de carinho e de inverno

entre a curva do pescoço e os cabelos de mulher velhinha,

que são flores brancas de ramos mais altos em cada dia,

cabidas em mãos pequeninas onde eu cabia.

 .

Agradeço à árvore de abrigo

onde sonhava crescer e ser grande e escrever e pintar,

e para onde, agora grande, posso sempre voltar,

carregada de outros sonhos e de outros invernos,

descalça ainda, mas quente e sossegada e nunca só,

como se abraçada na folhagem do colo de uma avó.
raquel patriarca | um.novembro.doismiletreze
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1 comentário:

  1. (A premissa é errada: o fantasma da minha muito cara Luiza não se zangaria minimamente por tentares contornar a «Magnólia» dela, como fez aliás, parece-me, o Daniel Faria, sobre quem ainda há uns dias falávamos. De qualquer modo, foi melhor assim. Está encantador)

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