Quantos livros tem um livro
Primeira Metade: Sobre Começar um Texto
Quando eu era pequena, tinha muitos sonhos. Agora
que sou maior, estou igual. Sonho com os pedaços do mundo que quero conhecer, os
abraços que quero apertar, as imagens que quero criar, os livros que hei-de
escrever. Estar aqui é um desses sonhos da idade adulta, arrumado na rubrica
das coisas admiráveis de que é preciso fazer parte. Quando me imaginava aqui, começava
sempre por agradecer às Correntes porque correm e por me levarem na correnteza.
Agradecer o estar aqui agora e todas as vezes que estive aí e que, no fim do
dia, regressei a casa maior. Não de tamanho, mas maior. Quando me imaginava
aqui, depois de agradecer, fazia uma comunicação brilhante. Não me parecia
muito difícil. Não sei porquê, nessa altura as ideias eram transparentes e
ordenadas, as palavras respondiam à chamada sem atraso e sem engulho. Era
preciso citar um autor de referência: Pessoa, Benjamin ou Borges; Camus, Barthes,
ou Foucault. Falar de literatura e arte, de coisas verdadeiras e universais.
Como se no mundo – ou em mim – não restassem dúvidas da minha sabedoria sobre todas
as matérias.
Mas estas coisas só acontecem na minha imaginação.
Sonho e nada mais. No momento em que chegou o convite, todo o dia me parecia
feito de irrealidade. A cabeça ficou vazia e a página em branco. Afinal, é tudo
muito difícil.
Sentei-me para escrever e não chegavam as frases que
deviam iluminar-me as ideias. Fui à procura dos cadernos e das notas amarelas com
os registos da genialidade alheia, e nada rimava com o tema ou a situação. Em
ressonância longínqua das traseiras do cérebro, soava uma espécie de conselho
que ouvi quando era pequena: “Sabendo muito do que falas, fala pouco. Sabendo
pouco, fala quase nada. Sabendo nada, sorri”.
Segunda Metade: Sobre o Meu Avô
E assim, em vez de Benjiamin, Borges ou Barthes,
veio ajudar-me uma espécie de aforismo de Joaquim Patriarca, mestre-escola,
guarda-livros, organista na Igreja de S. Pedro, emigrante, retornado, avô. E a
conselho dele, porque falamos de livros, vou falar pouco.
Quando eu era pequena, fascinava-me a capacidade que
o meu avô tinha para guardar objectos. Para ele nada existia que fosse
imprestável. Mais cedo ou mais tarde, tudo ganhava serventia e, por isso, tudo
se guardava em lugar próprio, rigorosamente ordenado. Esta filosofia, vim a
percebê-lo mais tarde, levava-me a intuir que, até para mim – criatura algo
estouvada, grande consumidora de mercurocromo, tantas vezes nas imediações de
coisas indesejáveis como cacos ou nódoas –, até para mim, dizia eu, se guardava
um lugar e uma função. E, enquanto não descobria o meu lugar e a minha função,
fui absorvida no fascínio de como o meu avô se movia pelo mundo e da serenidade
com que coleccionava todo o tipo de objectos.
As folhas soltas de papel e os fios de diferentes
materiais, os tocos dos lápis que já mal serviam para escrever, as sementes que
havia de pôr na terra, os pequenos pedaços de plástico que, mais tarde e com a
ajuda de um canivete, transformava em mistérios de rezar, perfeitamente
redondos e recortados: um buraco ao centro para o indicador, dez saliências em
forma de pétala, uma para cada ave-maria, a cruz na décima primeira pétala, no
lugar do pai-nosso.
Cada gesto do meu avô era feito com esmero e
ternura. O vinco nas arestas dos embrulhos de correio e o nó direito que unia,
em absoluta perpendicularidade, o cruzamento do cordão, a caligrafia pausada, aprumada,
perfeita, a adivinhar que, naquele endereço, tinha de erguer-se um palácio. As
canas enterradas na horta a estender fios de sisal que desenhavam uma espécie
de guias, por onde se alinhavam os sulcos na terra, as sementes e as plantas.
Fascinavam-me as coisas que ele fazia mas, mais
ainda, o vagar sereno que colocava em tudo. Uma alegria simples que enchia de
plenitude os gestos mais comuns. Curiosamente desimportado do resultado final,
o meu avô parecia absorver-se no encantamento – para nós invisível – de todas
as tarefas a que se entregava, como se a função inteira da existência se
guardasse naquele momento. Punha, de verdade, quanto era no mínimo que fazia,
de maneira que despachar uma encomenda ou plantar morangueiros se transformavam
em formas de arte.
Foi nesta altura, enquanto os meus avós se
transformavam em memórias nucleares, que aprendi a relacionar-me com os livros.
Eu não fui uma daquelas crianças adoráveis que, sentadamente sábias, amam os
livros desde que se lembram de respirar. Gostava muito que me contassem
histórias, como todas as crianças, mas adorava correr desenfreadamente pelas
ruas íngremes que desciam da casa dos meus avós ao fundo da vila. Saltar muros
e inventar barcos feitos de casca de árvore que depois fazia navegar nos
ribeiros que desciam da serra pela primavera. Subir às tílias descalça, com um
saco de pano para apanhar os raminhos de fazer chá, sair nos dias de feira, a
cheirar os bolos de leite ainda quentes, e ajudar a avó a escolher os figos
mais maduros e as colheres de pau mais redondas e fundas. Havia uma televisão,
e não é que não gostasse de a ver, mas o aparelho era muito demorado de arrancar,
apanhava a televisão espanhola e não havia desenhos animados, só programas de
agricultura e notícias. Naquele tempo, a televisão era mais um entroncho que
uma distracção a sério. E havia a escola, claro, e a catequese para onde eu ia
sempre muito contente porque, no regresso, a minha avó me dava uma bolacha de
chocolate. Era uma obra-prima em forma de estrela, vinha embrulhada em papel de
prata colorido, começava a derreter-se mal me tocava nos dedos e inspirava-me
um conforto interior que eu me habituei a confundir com o sentimento da fé.
Os livros trouxeram a calma e a profundidade que
eu não me dava ao trabalho de procurar em nenhuma outra dimensão na vida a não
ser, talvez, na minha família.
Terceira Metade: Sobre os Livros
Quando eu era pequena passava muito tempo em casa
dos meus avós. Viviam por lá muitos livros, uma condição que eu entendia como
decorrência natural de, num tempo antes de mim, o meu avô ter sido guarda-livros.
Um guarda-livros era, evidentemente, uma espécie de bibliotecário com um título
singelo. Naquele tempo e lugar, tudo era menos pretensioso, sobretudo os nomes
das profissões. Foi o meu avô quem ensinou a minha avó a ler e eu, que assistia
a toda aquela circunstância de meiguice, mais convencida ficava de que a sua função
no mundo era a de guardador de livros. Na dimensão preservável do objecto, como
fazia com todas as coisas, e na dimensão partilhável do conteúdo, que lia para
si e para nós, ensinava a ler e ajudava a compreender.
Quando eu era pequena o meu avô ensinou-me a
encadernar os livros e eu entendi que devia aprender a fazê-lo com a ternura e
o esmero que ele trazia sempre nas mãos. Ele levava horas a reforçar as capas e
a cobri-las com papéis de cores e texturas diferentes, impecavelmente vincados
nas dobras, os títulos nas lombadas claramente desenhados naquela caligrafia
brilhante e impossível de copiar. Eu aprendia a vincar as dobras com os dedos
pequeninos e mal capazes. Queria muito imitar-lhe a arte mas, com a mesma
naturalidade que os gestos do meu avô se inclinavam para a perfeição, os meus
obedeciam a um desvio incontrolável para o desastre e, muitas vezes se rasgavam
os papéis e se estragavam os títulos com erros de ortografia. O meu avô
suspirava, sobrepunha a sua paciência à minha frustração, deitavam-se à lareira
os papéis rasgados e os erros de ortografia, e a tarefa começava de novo. Desta
vez, melhor.
O meu primeiro livro contava a história da fuga de
uma tal Alice através do espelho. Foram
precisas várias tentativas até o serviço ficar aceitável e foi maravilhoso ver
o meu avô sorrir e dizer que sim com a cabeça enquanto examinava o meu primeiro
projecto: um desconchavo de papel manteiga com as dobras quase tão espessas
como o próprio livro. Foi um triunfo indizível. E, logo a seguir, chegou uma
nova dificuldade.
No momento de colocar o livro na estante, havia um
banco para eu subir e ficar da mesma altura do meu avô, e havia uma única regra
de arrumação, muito simples que se baseava - em partes iguais – nos conceitos
de ordem e de caos, um critério difícil de definir e que ordenava os títulos alfabeticamente
segundo o destino geográfico do assunto.
O meu avô levou algum tempo a explicar-me que cada
livro é como uma viagem e que cada viagem se faz rumo a um destino diferente. Eu
não compreendi e ele foi buscar um volume grosso que trazia na lombada as
palavras Crime e Castigo. Explicou
que era um livro muito importante para conhecer os conceitos de bem e mal,
certo e errado que vivem nas aspirações e atitudes de cada um. Uma viagem que
se fazia rumo àquilo que uma pessoa deseja para si e ao percurso que está disposto
a fazer para lá chegar. Como eu fiquei muito calada, a segurar nas mãos a minha
Alice sem ideia de onde a guardar, o
meu avô pegou num outro livro – 20.000
Léguas Submarinas – a aventura de uma viagem pelas profundezas do mar, ou
então, uma viagem pelo engenho humano e pela vontade de ultrapassar o medo que
é natural sentir-se em relação ao desconhecido.
Eu olhava para as minhas mãos.
Tens de descobrir onde te leva o teu livro,
revelou por fim o meu avô.
E eu compreendi que precisava de o ler e, só
passados muitos dias, voltei a subir ao banco resolutamente à procura da
prateleira marcada com M de Maravilhas.
Fui compreendendo aos poucos o sistema de
arrumação de livros que o meu avô praticava, garantindo-me sempre que era assim
que se faziam as coisas nas verdadeiras bibliotecas. Acontecia por vezes termos
de mudar os livros e as viagens de um lugar para outro. A cabana do Pai Tomás – muito muito bonito – teve morada no E de
Escravatura, depois mudou-se para o A de Abolicionismo e acabou, mais tarde,
por inaugurar uma nova secção no L para Livros que Salvaram o Mundo.
Quando eu era pequena aprendi com o meu avô a
ternura de todas as coisas. Aprendi que é possível ser feliz em sossego. Que os
livros devem ser lidos antes de arrumados, que cada livro propõe uma viagem e
que cada leitura pode criar novos rumos a um caminho já percorrido. Aprendi a
ser guardadora de livros.
Mais tarde, muito mais tarde, depois de graduada, pós-graduada
e especializada, recebi um papel carimbado que me fez bibliotecária, que é só
um nome diferente para uma prática muito antiga. Estudei catalogação e
indexação, as listas ordenadas de termos e as tabelas de autoridade, os
sistemas de triagem das espécies bibliográficas e os códigos alfanuméricos das
cotas e descobri que, afinal, já não existem verdadeiras bibliotecas, como aquelas
de que falava o meu avô. Descobri que nas bibliotecas onde hoje se guardam os
livros não é possível compreender-se o mapa das viagens da humanidade. Da
humanidade que escreve e da humanidade que lê.
Mas em casa, guardo uma verdadeira biblioteca, com
estantes e prateleiras em que se faz um esforço genuíno de procura da verdade. Ainda
lá está o volume mal encadernado da pequena Alice
que agora repousa no I onde se alinham as viagens Interiores.
Foi com esse o livro que tudo começou. Quantos
livros se guardam lá dentro? Suponho que terei de o ler outra vez. Por agora, não
sei. E como não sei, devo apenas sorrir.
texto | raquel patriarca | fotografia | rui sousa
vinteesete.fevereiro.doismiledezasseis