Reunimo-nos
por estes dias ao redor dos poemas de Sophia e, nesta mesa em particular,
desafiados pelo verso: “este é o tempo em que os homens renunciam”. Tem
vivido comigo este verso e revejo-me nele porque diz a verdade.
“Este é o tempo em que os homens renunciam” parece-me,
em partes iguais, um testemunho desencantado e um juízo acusador. Desencantado
por haver, em todas as formas de renúncia, uma semente de puro desencanto. E acusador
por me sentir culpada de praticar um escondimento muito gémeo da renúncia.
Sou
culpada, e aqui me confesso, de renunciar à realidade. Comecei durante os anos de
curso. Fui estudar História porque queria compreender
os caminhos da humanidade. Perceber o que existe de comum, eliminar os
equívocos que separam os povos mais do que as fronteiras. Acreditava no
aprender com o passado e no projectar um futuro limpo de vergonhas. Mas, claro,
a História estuda a realidade e não a utopia e isso desencantou-me muito.
Durante
o primeiro ano, li a Poética de
Aristóteles e, chegada à reflexão sobre “o ofício do historiador, de contar o
que aconteceu, e o do poeta, de representar o que poderia acontecer,” comecei a
desconfiar de que estava no curso errado. Não desisti, é verdade, mas aprendi a
desertar um pouco, e fazia-o com os livros.
As
leituras obrigatórias do curso – tudo bíblias absolutas assinadas por autores
canónicos da historiografia académica, as leituras que garantiam brilhantismo nos
exames – tinham quase sempre o efeito de me deprimir. Nas raras alturas em que
não era assim, o sentimento de tédio chegava tão fundo que tinha verdadeira
saudade dos tempos em que me deitava no quintal, com os olhos à altura da erva,
e ficava a vê-la crescer.
Fui
fugindo como pude nos corredores da Faculdade de Letras, evitava cruzar-me com
os historiadores, os arqueólogos e os sociólogos que era obrigatório ler. Esquivava-me
aos cientistas da política, da geografia humana e da estatística, essas almas
atormentadas de números e percentagens. Assobiava para o lado aos vestígios e às
fontes documentais, e nunca lia nada na forma diminuta e cruel das notas de
rodapé.
Hoje, aqui, fico contente de evocar
um outro verso de Sophia: “o
poema me levará no tempo”. Foi
assim que acabei o curso: sempre que podia, trocava tudo por poemas.
No
princípio era o Verbo, e a seguir veio Gilgamesh. Depois, estudei o Egipto de
Christian Jacq e o mundo clássico nas epopeias de Homero e nas memórias que o
imperador Adriano nunca escreveu. Aprendi a época medieval em Dante, Walter
Scott, Umberto Eco e Ingmar Bergman. O Renascimento não renasceria sem os
moinhos gigantes do Quixote de
Cervantes, ou as dúvidas existenciais do Hamlet de Shakespeare. A França pertenceu a Victor Hugo que a
entregou, mais tarde, a Balzac. Como a Rússia veio a ser de Tolstoi, Dostoiévski e Pasternak.
Descobri a América nas mulheres perseguidas de Hawthorne e nas memórias de
Calamity Jane, em Mark Twain, Salinger e,
mais tarde, em Walt Wiltman e Emily Dickinson. Visitei a Inglaterra de Jane Austen
e a de Charles Dickens. Li a ditadura espanhola nos
poemas de Garcia Lorca, nos contos de Manuel Rivas, no Guernica de Picasso. O Desconhecido nesta
morada de Kressman Taylor e O Rapaz do Pijama às Riscas de John
Boyne confessaram-me os pecados da Alemanha nazi na Segunda Guerra. Não existe
América do Sul sem Neruda e García Marques, nem Europa de Leste sem Kundera e
Le Carré. Não existe Índia sem Tagore e Moravia, não existe Brasil sem
Guimarães Rosa.
Bem sei
que “a minha pátria é onde o vento passa” mas
falta-me dizer que é nas cantigas de amigo que mora o nosso medievalismo. Que parte
da alma portuguesa está no vernáculo desbragado a que eruditamente chamamos de Vicentino. Que não se encontra sentido
nos Descobrimentos sem o Adamastor de
Camões ou as crónicas de Fernão Mendes Pinto que inventou, pelo menos, metade
do que escreveu. Já não existe nenhum arco junto ao oratório de Santa Ana, vi-o
nas narrativas de Garrett, mestre das palavras e dos punhos de renda. São
tantos os poetas, mas falarei apenas de mais dois. Porque são os versos de José
Afonso que cantam os nossos anos de sombra, e porque são os versos de Sophia
que fazem nascer “o dia inicial inteiro e limpo / onde
emergimos da noite e do silêncio”.
Estes novos
vícios acumulavam com outros, mais antigos e arreigados, de voltar aos livros da
infância, como lugares de conforto. Sabia-me bem, sabe-me bem ainda, perder-me
nas florestas assustadoras dos irmãos Grimm, visitar Lilipute, a Terra Média e
o Asteróide B-612. Encher o jardim de gigões e anantes à procura de lagartinhas
muito comilonas. Abrigar no sótão um dragão tímido, ter monstros escondidos no
roupeiro, um tubarão na banheira e um tigre que vem só para tomar chá.
Talvez
eu tenha feito o curso muito ao contrário o que, em certa medida, é adequado
porque em nenhuma outra dimensão humana correm as coisas tanto ao contrário
como na História. Ao contrário ou não, creio hoje que existe mais verdade nas palavras de um poeta do que em todos os livros de
História. É que a História, proprietária de um enorme potencial de
aplicabilidade prática, é torcida e instrumentalizada por um sem número de
flancos, a que se dá o nome de perspectivas. Já a Poesia, por ter fama de ser
inútil, é livre de se dedicar só à verdade.
E para
que serve, afinal a poesia. Trago sempre comigo a resposta de um filósofo –
Nuccio Ordine – que diz, simplesmente: A poesia não serve. Porque a poesia não
é servil. A poesia só sabe libertar.
Pudesse a História ser parente
mais chegada da poesia, e havia de nos servir, pelo
menos, “para enfrentarmos juntos o terror da morte / para ver a
verdade e perder o medo”. E
isto, é outro verso de Sophia. A mesma Sophia que trouxe um Cavaleiro da Dinamarca, que esculpiu um Rapaz de Bronze, que fez emergir a Menina do Mar.
Estou
em crer que a poesia, a ficção, as histórias carregam a esperança da humanidade
face à renúncia, mas consumidas pausada e pensadamente. E quanto mais cedo
melhor. Porque é mais fácil encontrar um Evangelho
Segundo Jesus Cristo numa biblioteca onde, em tempos, se plantou A Maior Flor do Mundo.
As
formas de renúncia não são todas iguais. A modalidade de visitar o Valete de
Copas e o Coelho Branco logo a seguir ao noticiário é uma pequeneza se
comparada com outras. Se renunciar à realidade é grave. Renunciar ao sonho é
uma catástrofe.
A pior
de todas as renúncias, é a que vive nos neurónios das crianças.
Há
poucas experiências tão desconcertantes como, na frente de crianças ou jovens, perguntar
sobre sonhos, desejos e viagens, e ter de retorno um olhar distante, um encolher
de ombros que dói como um murro no estômago. Fica-nos a alma ao dependuro, sem respostas
e, pior ainda, sem perguntas. É a desistência mais feia porque é voluntária.
A
questão não é estarem as crianças tolhidas de pensar ou dizer o que pensam. O
problema é não desejarem nada. Não sonharem nada.
E a gravidade
do problema um é que rapidamente leva ao problema dois ponto zero. Quando se
têm as crianças em renúncia, alheias ao “horizonte
vazio em que nada resta”, é certo que o vazio se preencha com toda a
sorte de derivados da estupidez. Se o problema um é a indiferença, o problema
dois é a incapacidade de distinguir o autêntico do falso, o essencial do
acessório, o conteúdo da fachada, o que é bom e universal daquilo que é só o
ponto absoluto de zero.
Ando
por aí a defender mais poetas, mais histórias e mais perguntas como uma talvez solução.
Estou a ser simplista, claro, mas a arma que
resta contra a renúncia é o espírito crítico. Pensar muito e livremente,
interpretar tudo à luz da liberdade pensante, tirar conclusões autonomamente,
construir caminhos próprios. Para isso é preciso adestrar o cérebro como
fazemos com as pernas quando aprendemos a andar.
Estaremos
sempre expostos à ignorância e à malícia como à varicela. Só evitaremos o
contágio se desenvolvermos anticorpos na nossa mente.
Faz de
conta que vos vou contar uma história. Um pequeno exemplo para ilustrar os
disparates que estou a dizer.
Todos
sabemos que o conto sobre uma marioneta animada a quem Carlo Collodi chamou de Pinóquio tem por objectivo ensinar as
crianças a nunca dizerem uma mentira, verdade? Sim, mas isso é só parte da
verdade. E meia verdade é já uma mentira inteira. Conta-nos a dita história
que, Pinóquio é um menino de madeira que quer ser um menino de verdade mas, por
ironia, é demasiado imaginativo. Uma outra ironia esconde-se no facto de o
pequeno Pinóquio ser o personagem mais honesto da história, por trazer
incorporado e à vista de todos um infalível polígrafo. Por outro lado, os restantes
personagens, pessoas verdadeiras todas elas, podem mentir quanto lhes apeteça
sem que ninguém lhes aponte o dedo ao nariz.
A
primeira camada do conto tem a moral simples de ensinar a não mentir, o que é
sempre mais ou menos bonito. A segunda camada da história convida a reflectir
nas muitas circunstâncias em que a falsidade se esconde, mascarando-se de outra
coisa. E é esta, e não aquela, a ferramenta verdadeiramente útil para uma alma
pensante.
Ficar
só na primeira conclusão, é perder uma oportunidade de usar a inteligência e é perder
a essência da história. É, no fundo, alimentar o ciclo de preguiça mental e de
renúncia que vem atrás.
E agora,
uma moral para a minha história. Talvez não haja nenhuma.
Ou talvez
começando cedo e aos poucos, como no caminho de poetas e contadores de
histórias que me trouxe, ao contrário, a um destino direitamente desenhado para
mim.
Talvez evitando
a obsessão do imediatamente útil e do materialmente compensador. Talvez percebendo
que representar a realidade com cinismo é uma forma de falsidade pior do que a
mentira.
Talvez
mostrando às crianças os vários sentidos possíveis de uma história, em vez de
as insinuar à renúncia da sua voz e a ter medo de errar.
Talvez levando
para casa um poeta que nos deixe versos soltos escritos na alma. Talvez inspirando
uma criança a dizer como Sophia, eu “sou o único homem a bordo do meu barco”.
Talvez,
depois de Collodi venha Lewis Carroll e Sophia de Mello Breyner, e depois Homero
e Shakespeare e todos os outros, e com eles o conhecimento crítico e verdadeiro
sobre a História da humanidade. Se não da humanidade como conjunto de pessoas
humanas, pelo menos da humanidade como sentimento que nos une a todos, para lá
do tempo e do espaço que espartilham a História.
Talvez
havendo mais dias como este, ao redor da verdade dos versos, possa haver no
mundo mais crianças prontas a conhecer as “cidades
acesas na distância” e menos homens que renunciam, sem perguntas, ao
seu direito a sonhar.
dos
sublinhados:
“este
é o tempo em que os homens renunciam” de Este é o tempo; “o poema me levará no tempo” de O poema; “a minha pátria é onde o vento
passa” de Pirata; “o dia inicial
inteiro e limpo / onde emergimos da noite e do silêncio” de 25 de Abril; “para enfrentarmos juntos o
terror da morte / para ver a verdade e perder o medo” de Para atravessar contigo o deserto do mundo; “horizonte vazio em que
nada resta” de Horizonte vazio; “sou o único homem a bordo do meu barco” de
Pirata; “cidades acesas na distância”
de Há cidades acesas na distância,
todos poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen.
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