quinta-feira, 21 de março de 2019

Este ano nas Correntes d'Escritas















Mais Poetas, Mais Histórias e Mais Perguntas Como Uma Talvez Solução


Reunimo-nos por estes dias ao redor dos poemas de Sophia e, nesta mesa em particular, desafiados pelo verso: “este é o tempo em que os homens renunciam”. Tem vivido comigo este verso e revejo-me nele porque diz a verdade.
Este é o tempo em que os homens renunciam” parece-me, em partes iguais, um testemunho desencantado e um juízo acusador. Desencantado por haver, em todas as formas de renúncia, uma semente de puro desencanto. E acusador por me sentir culpada de praticar um escondimento muito gémeo da renúncia.
Sou culpada, e aqui me confesso, de renunciar à realidade. Comecei durante os anos de curso. Fui estudar História porque queria compreender os caminhos da humanidade. Perceber o que existe de comum, eliminar os equívocos que separam os povos mais do que as fronteiras. Acreditava no aprender com o passado e no projectar um futuro limpo de vergonhas. Mas, claro, a História estuda a realidade e não a utopia e isso desencantou-me muito.
Durante o primeiro ano, li a Poética de Aristóteles e, chegada à reflexão sobre “o ofício do historiador, de contar o que aconteceu, e o do poeta, de representar o que poderia acontecer,” comecei a desconfiar de que estava no curso errado. Não desisti, é verdade, mas aprendi a desertar um pouco, e fazia-o com os livros.
As leituras obrigatórias do curso – tudo bíblias absolutas assinadas por autores canónicos da historiografia académica, as leituras que garantiam brilhantismo nos exames – tinham quase sempre o efeito de me deprimir. Nas raras alturas em que não era assim, o sentimento de tédio chegava tão fundo que tinha verdadeira saudade dos tempos em que me deitava no quintal, com os olhos à altura da erva, e ficava a vê-la crescer.
Fui fugindo como pude nos corredores da Faculdade de Letras, evitava cruzar-me com os historiadores, os arqueólogos e os sociólogos que era obrigatório ler. Esquivava-me aos cientistas da política, da geografia humana e da estatística, essas almas atormentadas de números e percentagens. Assobiava para o lado aos vestígios e às fontes documentais, e nunca lia nada na forma diminuta e cruel das notas de rodapé.
Hoje, aqui, fico contente de evocar um outro verso de Sophia: o poema me levará no tempo”. Foi assim que acabei o curso: sempre que podia, trocava tudo por poemas.
No princípio era o Verbo, e a seguir veio Gilgamesh. Depois, estudei o Egipto de Christian Jacq e o mundo clássico nas epopeias de Homero e nas memórias que o imperador Adriano nunca escreveu. Aprendi a época medieval em Dante, Walter Scott, Umberto Eco e Ingmar Bergman. O Renascimento não renasceria sem os moinhos gigantes do Quixote de Cervantes, ou as dúvidas existenciais do Hamlet de Shakespeare. A França pertenceu a Victor Hugo que a entregou, mais tarde, a Balzac. Como a Rússia veio a ser de Tolstoi, Dostoiévski e Pasternak. Descobri a América nas mulheres perseguidas de Hawthorne e nas memórias de Calamity Jane, em Mark Twain, Salinger e, mais tarde, em Walt Wiltman e Emily Dickinson. Visitei a Inglaterra de Jane Austen e a de Charles Dickens. Li a ditadura espanhola nos poemas de Garcia Lorca, nos contos de Manuel Rivas, no Guernica de Picasso. O Desconhecido nesta morada de Kressman Taylor e O Rapaz do Pijama às Riscas de John Boyne confessaram-me os pecados da Alemanha nazi na Segunda Guerra. Não existe América do Sul sem Neruda e García Marques, nem Europa de Leste sem Kundera e Le Carré. Não existe Índia sem Tagore e Moravia, não existe Brasil sem Guimarães Rosa.
Bem sei que “a minha pátria é onde o vento passa” mas falta-me dizer que é nas cantigas de amigo que mora o nosso medievalismo. Que parte da alma portuguesa está no vernáculo desbragado a que eruditamente chamamos de Vicentino. Que não se encontra sentido nos Descobrimentos sem o Adamastor de Camões ou as crónicas de Fernão Mendes Pinto que inventou, pelo menos, metade do que escreveu. Já não existe nenhum arco junto ao oratório de Santa Ana, vi-o nas narrativas de Garrett, mestre das palavras e dos punhos de renda. São tantos os poetas, mas falarei apenas de mais dois. Porque são os versos de José Afonso que cantam os nossos anos de sombra, e porque são os versos de Sophia que fazem nascer “o dia inicial inteiro e limpo / onde emergimos da noite e do silêncio”.

Estes novos vícios acumulavam com outros, mais antigos e arreigados, de voltar aos livros da infância, como lugares de conforto. Sabia-me bem, sabe-me bem ainda, perder-me nas florestas assustadoras dos irmãos Grimm, visitar Lilipute, a Terra Média e o Asteróide B-612. Encher o jardim de gigões e anantes à procura de lagartinhas muito comilonas. Abrigar no sótão um dragão tímido, ter monstros escondidos no roupeiro, um tubarão na banheira e um tigre que vem só para tomar chá.
Talvez eu tenha feito o curso muito ao contrário o que, em certa medida, é adequado porque em nenhuma outra dimensão humana correm as coisas tanto ao contrário como na História. Ao contrário ou não, creio hoje que existe mais verdade nas palavras de um poeta do que em todos os livros de História. É que a História, proprietária de um enorme potencial de aplicabilidade prática, é torcida e instrumentalizada por um sem número de flancos, a que se dá o nome de perspectivas. Já a Poesia, por ter fama de ser inútil, é livre de se dedicar só à verdade.
E para que serve, afinal a poesia. Trago sempre comigo a resposta de um filósofo – Nuccio Ordine – que diz, simplesmente: A poesia não serve. Porque a poesia não é servil. A poesia só sabe libertar.
Pudesse a História ser parente mais chegada da poesia, e havia de nos servir, pelo menos, para enfrentarmos juntos o terror da morte / para ver a verdade e perder o medo”. E isto, é outro verso de Sophia. A mesma Sophia que trouxe um Cavaleiro da Dinamarca, que esculpiu um Rapaz de Bronze, que fez emergir a Menina do Mar.
Estou em crer que a poesia, a ficção, as histórias carregam a esperança da humanidade face à renúncia, mas consumidas pausada e pensadamente. E quanto mais cedo melhor. Porque é mais fácil encontrar um Evangelho Segundo Jesus Cristo numa biblioteca onde, em tempos, se plantou A Maior Flor do Mundo.
As formas de renúncia não são todas iguais. A modalidade de visitar o Valete de Copas e o Coelho Branco logo a seguir ao noticiário é uma pequeneza se comparada com outras. Se renunciar à realidade é grave. Renunciar ao sonho é uma catástrofe.
A pior de todas as renúncias, é a que vive nos neurónios das crianças.
Há poucas experiências tão desconcertantes como, na frente de crianças ou jovens, perguntar sobre sonhos, desejos e viagens, e ter de retorno um olhar distante, um encolher de ombros que dói como um murro no estômago. Fica-nos a alma ao dependuro, sem respostas e, pior ainda, sem perguntas. É a desistência mais feia porque é voluntária.
A questão não é estarem as crianças tolhidas de pensar ou dizer o que pensam. O problema é não desejarem nada. Não sonharem nada.
E a gravidade do problema um é que rapidamente leva ao problema dois ponto zero. Quando se têm as crianças em renúncia, alheias ao “horizonte vazio em que nada resta”, é certo que o vazio se preencha com toda a sorte de derivados da estupidez. Se o problema um é a indiferença, o problema dois é a incapacidade de distinguir o autêntico do falso, o essencial do acessório, o conteúdo da fachada, o que é bom e universal daquilo que é só o ponto absoluto de zero.
Ando por aí a defender mais poetas, mais histórias e mais perguntas como uma talvez solução. Estou a ser simplista, claro, mas a arma que resta contra a renúncia é o espírito crítico. Pensar muito e livremente, interpretar tudo à luz da liberdade pensante, tirar conclusões autonomamente, construir caminhos próprios. Para isso é preciso adestrar o cérebro como fazemos com as pernas quando aprendemos a andar.
Estaremos sempre expostos à ignorância e à malícia como à varicela. Só evitaremos o contágio se desenvolvermos anticorpos na nossa mente.
Faz de conta que vos vou contar uma história. Um pequeno exemplo para ilustrar os disparates que estou a dizer.
Todos sabemos que o conto sobre uma marioneta animada a quem Carlo Collodi chamou de Pinóquio tem por objectivo ensinar as crianças a nunca dizerem uma mentira, verdade? Sim, mas isso é só parte da verdade. E meia verdade é já uma mentira inteira. Conta-nos a dita história que, Pinóquio é um menino de madeira que quer ser um menino de verdade mas, por ironia, é demasiado imaginativo. Uma outra ironia esconde-se no facto de o pequeno Pinóquio ser o personagem mais honesto da história, por trazer incorporado e à vista de todos um infalível polígrafo. Por outro lado, os restantes personagens, pessoas verdadeiras todas elas, podem mentir quanto lhes apeteça sem que ninguém lhes aponte o dedo ao nariz.
A primeira camada do conto tem a moral simples de ensinar a não mentir, o que é sempre mais ou menos bonito. A segunda camada da história convida a reflectir nas muitas circunstâncias em que a falsidade se esconde, mascarando-se de outra coisa. E é esta, e não aquela, a ferramenta verdadeiramente útil para uma alma pensante.
Ficar só na primeira conclusão, é perder uma oportunidade de usar a inteligência e é perder a essência da história. É, no fundo, alimentar o ciclo de preguiça mental e de renúncia que vem atrás.
E agora, uma moral para a minha história. Talvez não haja nenhuma.
Ou talvez começando cedo e aos poucos, como no caminho de poetas e contadores de histórias que me trouxe, ao contrário, a um destino direitamente desenhado para mim.
Talvez evitando a obsessão do imediatamente útil e do materialmente compensador. Talvez percebendo que representar a realidade com cinismo é uma forma de falsidade pior do que a mentira.
Talvez mostrando às crianças os vários sentidos possíveis de uma história, em vez de as insinuar à renúncia da sua voz e a ter medo de errar.
Talvez levando para casa um poeta que nos deixe versos soltos escritos na alma. Talvez inspirando uma criança a dizer como Sophia, eu “sou o único homem a bordo do meu barco”.
Talvez, depois de Collodi venha Lewis Carroll e Sophia de Mello Breyner, e depois Homero e Shakespeare e todos os outros, e com eles o conhecimento crítico e verdadeiro sobre a História da humanidade. Se não da humanidade como conjunto de pessoas humanas, pelo menos da humanidade como sentimento que nos une a todos, para lá do tempo e do espaço que espartilham a História.
Talvez havendo mais dias como este, ao redor da verdade dos versos, possa haver no mundo mais crianças prontas a conhecer as “cidades acesas na distância” e menos homens que renunciam, sem perguntas, ao seu direito a sonhar.




dos sublinhados:
“este é o tempo em que os homens renunciam” de Este é o tempo; “o poema me levará no tempo” de O poema; “a minha pátria é onde o vento passa” de Pirata; “o dia inicial inteiro e limpo / onde emergimos da noite e do silêncio” de 25 de Abril; “para enfrentarmos juntos o terror da morte / para ver a verdade e perder o medo” de Para atravessar contigo o deserto do mundo; “horizonte vazio em que nada resta” de Horizonte vazio; “sou o único homem a bordo do meu barco” de Pirata; “cidades acesas na distância” de Há cidades acesas na distância, todos poemas de Sophia de Mello Breyner Andresen.

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