terça-feira, 19 de agosto de 2008

portugal nos jogos olímpicos de pequim


Sinto hoje – e comigo muitos portugueses – que somos uns coitadinhos. E a razão para tal sentimento é muito simples: é que – apesar do faz de conta, da gabarolice e da esperteza saloia – nós somos, efectivamente, uns coitadinhos.
E somos coitadinhos porque não sabemos estar à altura das situações, nem ter a contenção e dignidade que cada momento merece. Somos coitadinhos porque somos pobres de espírito e nos lançamos ao pescoço uns dos outros ao menor sinal de deslize, desatamos atribuir culpas ao primeiro sintoma de fracasso, e nos achamos capazes de criticar e fazer juízos de valor sobre o que não conhecemos nem compreendemos.
Os últimos dias, e sobretudo as últimas 24 horas, têm sido profícuos em trocas de mimos entre “portugueses descontentes”, os atletas da Missão Portuguesa e o próprio Comité Olímpico de Portugal, tudo patrocinado, está bom de ver, pela nossa sempre oportuna Comunicação Social.
Os “portugueses descontentes” mostram-se sobretudo indignados pela noção generalizada de má prestação dos seus atletas, agravada pelos comentários pouco felizes que são proferidos no fim das provas. E, afinal de contas, isto sai tudo do nosso bolso. Em primeiro lugar: não, não sai. Uma parte significativa do orçamento sai dos bolsos dos patrocinadores oficiais, e dos oficiosos; que são sempre (e sempre serão) os paizinhos dos atletas, eles próprios e restante família. Para quem não sabe, um atleta olímpico demora uma vida a criar e não os 4 ou 5 anos de calendário que cabem nos projectos dos comités olímpicos de cada país e que antecedem os grandes eventos. E para que não haja dúvidas de quem pagou o quê, todos esses planos de actividades, orçamentos e relatórios são públicos, e podem ser consultados no site oficial do C.O.P. Pelo contrário, o esforço, motivação e sacrifícios são totalmente da responsabilidade dos atletas e respectivas famílias, que aí os “portugueses” que contribuem são muito poucos. Os restantes entram agora em acção a exigir resultados de excelência de alguém cuja existência desconheciam até ontem ter competido numa modalidade que não sabem muito bem o que é…
Porque desporto que é desporto em Portugal é o futebol e tudo o que ele acarreta de arguidos e processos em tribunal, madeixas de cabelo e tatuagens nas costas, frases feitas e fogo-de-artifício, parangonas de jornal e debates televisivos de baixo nível. Não temos uma cultura desportiva de modalidades olímpicas, e quanto mais depressa o assumirmos, tanto melhor para todos. Não somos sequer um povo sensível aos fundamentos do olimpismo. Não faremos nunca sombra a equipas de atletas oriundos de países que dedicam não só esforços financeiros e políticos, mas também todos os recursos necessários para que, no estádio olímpico e perante os olhos do mundo, possam elevar os seus atletas – e, por arrasto, todo o seu povo – ao nível de heróis da antiguidade. Os nossos heróis, aqueles que temos por vício achar que foi o país que pariu e de cujas vitórias também chove algum mérito para os restantes “portugueses”, são heróis única e exclusivamente por mérito próprio. São absolutamente excepcionais. Não são nem nunca foram a norma no nosso país.
É típico do português – ou talvez da natureza humana – ser-se muito exigente com os outros enquanto se vai guardando uma tolerância evangélica para si próprio. E os senhores jornalistas façam um favor à nação: deixem de entrevistar os atletas nas horas que se seguem às provas. Só quem nunca competiu é que pode pensar que resta uma pinga de sangue a irrigar o cérebro daqueles rapazes e raparigas depois do esforço físico, mental e emocional por que passam. É verdade que o Marco Fortes – jovem de 25 anos, estudante do ensino secundário, atleta do Sporting Clube de Portugal e participante na prova de lançamento do peso – foi profundamente infeliz ao tentar ser engraçadinho nas suas declarações à comunicação social. Foi um momento mau. E lá estava o bom repórter a registar para a posteridade e retransmitir até à náusea o segundo mau momento do atleta naquele dia. Abençoados de nós que erramos escabrosamente na vida sem duas dúzias de repórteres e vinte milhões de olhos em cima.
Muitos dos elementos da equipa olímpica foram deselegantes nas suas declarações. Inclusivamente o Presidente do Comité Olímpico de Portugal que, querendo controlar os comentários dos atletas, devia ter providenciado atempadamente para toda a delegação, a preparação necessária para tourear a comunicação social – sessão de formação a que deve também comparecer – ou, em última análise, mandá-los calar quando achasse que se estavam a ‘esticar’. O que ele não devia fazer era vir, ele próprio, para a comunicação social, acusá-los de dar desculpas esfarrapadas, falta de brio e profissionalismo. Como raio é que se acusa de falta de profissionalismo atletas que estão a representar um país que não lhes dá as condições para pôr a cantar um cego, quanto mais para se profissionalizarem?
Se Vânia Silva – professora de Educação Física de 28 anos, atleta do Juventude Vidigalense e participante nos jogos na modalidade de lançamento do martelo – fizesse ideia de que vários milhões de portugueses se interessam, não só pelo desporto que pratica, mas pelas palavras que diz perante a câmara e o microfone pouco depois de ver desfeitos os seus sonhos de qualificação, talvez tivesse feito outro discurso, ou dado uma desculpa menos esfarrapada. Está tudo dito quando ouvimos o testemunho singelo de Marcos Freitas – 20 anos, natural do Funchal e atleta que representa Portugal na modalidade de Ténis de Mesa – quando diz que não há desculpas para dar porque nunca teve condições de treino e trabalho como as que lhe são apresentadas em Pequim.
Não nos devemos sentir minimamente envergonhados por a Naíde Gomes ter pisado o risco duas vezes ou ter sido eliminada. Ficarmos tristes talvez. Desiludidos, sem dúvida. Mas a verdadeira vergonha é a troca de ‘recados’ e o mal-estar que se sente tanto aqui como lá, e tudo isto numa arena altamente mediática e internacional.
A vergonha é que um atleta com a estatura do Gustavo Lima diga que não pode mais sujeitar-se à vida que leva como atleta e sinta que não valeu a pena. É uma vergonha, mas não é para ele. Pergunto quantos dos “portugueses descontentes” teriam chegado onde ele chegou. Devemos ficar tristes que ele se sinta assim, sobretudo porque não nos é possível compreender ou pôr em causa o que ele sente. O esforço foi seu, o desgosto é seu, e o orgulho pela excelente classificação que teve é também, obrigatoriamente, só seu.
Outra excelente prestação desportiva foi a da Vanessa Fernandes. Foi uma alegria para todos, não há dúvidas. Tivesse ela sido diferente dos demais, tivesse ela passado ao largo da ‘polémica’ e dito uma perfeita banalidade vazia de conteúdo do tipo “por um minuto/centímetro/ponto se ganha e se perde” ou “o desporto é assim mesmo”, teria saído destas olimpíadas como uma verdadeira campeã.
Num dos documentos oficiais do C.O.P. disponíveis on-line podemos ler que “No Desporto há muitas incógnitas e variáveis sendo curta a distância da glória ao fracasso”. O que não diz é que a dignidade não deve nem pode ser uma incógnita ou uma variável, mas antes a única constante, na vitória como na derrota. É preciso ter consciência que a esmagadora maioria dos atletas presentes em qualquer competição dos Jogos Olímpicos vai regressar a casa sem medalhas no bolso. É preciso ter consciência que para a esmagadora maioria de nós nenhum destes estrondosos fracassos irá algum dia acontecer, porque não temos qualidade para tal. É preciso ter consciência de que eles falharam, mas nós falhámos mais.
r. bewusstsein
agosto de 2008

2 comentários:

  1. eh! eh!!!!!

    este teu post está demais!!!!
    é que é mesmo isso!!!!
    mas o pior para mim ainda foi o desgraçado do obikwelo (ou lá como se escreve o nome dele!!!), a pedir desculpa aos portugueses por não ter conseguido!!!!!!

    jokas
    Sain

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  2. Concordo plenamente! Não poderia ter escrito melhor. Infelizmente todo este celeuma passa muito pela cultura, ou então, falta de cultura e de mentalidade dos portugueses. Só se lembram que existem outros atletas para além dos de futebol quando chegam os Jogos Olímpicos e, consequentemente, o orgulho que repentinamente vem daí para podermos mostrar que somos bons em alguma coisa.
    O caso do Gustavo Lima só por si já é bem esclarecedor. Alguém que depende apenas de si próprio porque não tem qualquer patrocínio só pode estar de parabéns pelo lugar que meritoriamente conseguiu.
    Só os atletas é que podem saber o quanto custa não conquistar uma medalha e, muitas das vezes, nem sequer passar a uma final. Numa única prova estão em causa muitos anos de esforço, dedicação e sacrifício. Lamentavelmente são poucos os que assim pensam…

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